sexta-feira, 1 de setembro de 2023

Inês de Castro. Espia, Amante. Rainha de Portugal. Isabel Stilwell. «O terreiro das armas fervilhava de vozes e do raspar impaciente dos cascos de cavalo, ordens e gritos, e os homens aqueciam as mãos nas canecas de vinho quente que lhes traziam as criadas, que saíam da cozinha…»

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A Semente do Ódio (1326-1336)

Castelo de Albuquerque, Janeiro de 1326

«(…) Inês esqueceu a aflição e ofereceu-se para ser ela a dar o recado. Fazia de tudo para entrar na câmara de Zulema, onde frascos com lagartos e outros répteis, ou partes de répteis, brilhavam fantasmagoricamente à luz de velas, e o ar era tingido de um cheiro agridoce das ervas em raminhos, que pendiam do tecto. Às veres, Zulema mostrava-lhe as raízes de mandrágoras, colhidas em noites de lua cheia, as criadas da casa diziam que a moura as apanhava com a ajuda de um gigantesco cão preto que depois desaparecia, porque se uma mão humana tentasse o feito o grito estridente da mandrágora matá-lo-ia instantaneamente, mas Inês nunca vira o cão. Mas, mais do que tudo, Inês gostava dos mapas dos sete céus e dos sete planetas, e de ouvir ZuJema contar-lhe como eram habitados por anjos, que moviam os astros, provocando as mudanças das estações. Nos dias em que a moura estava bem-disposta lia-lhe alto um livro de Ramon Llull que contava como todos os seres humanos têm um anjo bom para os aconselhar e ajudar a lutar contra o demónio. Que o seu viesse em auxílio do tio Afonso, pediu baixinho.

Bateu à porta. Não se atrevia a entrar sem bater. Não ali. Â porta rodou nos guinchos e Inês durante uns instantes ficou calada.

Zulema era a mulher mais bonita que alguma vez vira, os cabelos pretos e sedosos, presos num pano de escarlate e ouro, os braços cobertos de pulseiras, algumas de ouro, outras de pedras, que brilhavam à luz que entrava pela janela. O tio Afonso dizia-lhe que Zulema era sábia, Zulema neta de ZuIema, a Astrónoma, que lera nas estrelas que o rei de Aragão conquistaria Maiorca, e o esperara com o filho na praia, mas os trovadores da corte de Albuquerque juravam-lhe que não passava de uma bruxa. Mas como podia ser bruxa se as bruxas eram feias e cresciam-lhes verrugas no nariz? Zulema, ainda para mais, não gostava de gatos.

Que pressa é essa?, perguntou-lhe a moura, e a sobrinha dos senhores de Albuquerque recuperou a fala. Que viesse depressa, o senhor Afonso Sanches precisava dela.

Zulema seguiu-a, observando curiosamente os seus passos ligeiros. Há seis anos ajudara-a dá-la à luz, fora a primeira a pegar-lhe ao colo, cortara o cordão em que corria o sangue dos Castro, observara o alinhamento dos asrros naquela noite,,, E soubera tudo, logo ali.

O terreiro das armas fervilhava de vozes e do raspar impaciente dos cascos de cavalo, ordens e gritos, e os homens aqueciam as mãos nas canecas de vinho quente que lhes traziam as criadas, que saíam da cozinha como formigas num carreirinho. Inês espreitou-os lá de cima, percebendo-os desanimados e derrotados. Ao longe, o fumo que subia aos céus não deixava dúvidas: La Codosera ardia, e grandes labaredas de fogo consumiam o restolho dos campos ainda por semear que rodeavam, lá em baixo, o grande castelo de Albuquerque». In Isabel Stilwell, Inês de Castro, Espia, Amante, Rainha de Portugal, 2021, Planeta de Livros Portugal, 2021, ISBN 978-989-777-509-3.

Cortesia de PlanetaLPortugal/JDACT

JDACT, Isabel Stilwell, Inês de Castro, Cultura e Conhecimento,