quarta-feira, 27 de setembro de 2023

O Astrólogo e o Rei. Brigid Hampton. «Levanta-se para encher os jarros de água, sentindo-se enjoada e com as entranhas às voltas. Dói-lhe a garganta e arde-lhe o estômago. Com as mãos trémulas, prepara mantimentos para a viagem. Queijo. Pão. Ovos cozidos. Um belo repasto de pêsames»

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Sevilha, 1492

«Nunca mais haverá uma noite tão longa quanto esta. Nem uma Lua tão implacável. Desliza, sorrateira, pelo céu, lançando a sua luz sobre a viela lá fora, arrastando a madrugada atrás de si.

O dinheiro cintila à luz das velas, dois montes bem alinhados sobre a mesa, ducados de ouro e reais de prata. Cem Estrelas apanhadas do céu. Paloma escolhe uma moeda, erguendo-a bem presa entre o polegar e o indicador. Pequena, brilhante, tem gravados os nomes do rei e da rainha de Espanha. Engole!, berra-lhe o pai, com uma expressão resoluta e feroz que ela nunca lhe vira até ali. Tenho mesmo de engolir?, pergunta ela, ouvindo a sua própria respiração rouca encher a sala.

Quem mais queres que o faça por ti? O papá tira uma moeda de ouro e mete-a rapidamente na boca. Bebe um gole de água e engole-a de um trago. Não custa nada!, grita com uma careta. Pega na faca e lança-se a cortar o pão. Não vais sentir nada. Os ducados como-os eu.

Paloma pega numa crosta de pão, parte um pedaço e humedece-o na boca com um gole de água. Mastiga. Leva a moeda aos lábios, entontecida pelo seu cheiro, como se fosse sangue. Sente o sabor amargo da massa húmida e a acidez do metal sobre a língua, e a seguir obriga-se a enfiá-la pela garganta abaixo, engasgando-se com os rebordos ásperos da prata batida.

Vês? A voz do papá é rouca. Este pode ser o melhor pequeno-almoço que alguma vez comeste! Tem de nos fazer aguentar durante muito tempo.

A família está sentada em silêncio à volta da grande mesa de carvalho, mastigando, engasgando-se e engolindo, enquanto observa as pilhas a diminuir.

Isto é perfeito para uma jornada! David, o irmão mais novo, ergue as sobrancelhas e revira os olhos, percorrendo a sala. Vai ser uma trabalheira voltar a reunir estes dois montes!

Enche as bochechas de ar e põe-se a saltar a pés juntos à volta da mesa, como um gafanhoto, atirando uma moeda ao ar e apanhando-a na boca aberta. Paloma lança-lhe um olhar de aviso e sufoca uma gargalhada irreprimível perante a cara cómica do irmão' Não tem graça, mas as cócegas que sente no peito recordam-lhe que, numa qualquer outra noite, estariam todos a rir-se das palhaçadas dele.

Levanta-se para encher os jarros de água, sentindo-se enjoada e com as entranhas às voltas. Dói-lhe a garganta e arde-lhe o estômago. Com as mãos trémulas, prepara mantimentos para a viagem. Queijo. Pão. Ovos cozidos. Um belo repasto de pêsames.

Vê a sala a andar à roda, uma realidade estranha à claridade desbotada de uma única vela. No chão, a arca onde o papá guarda os seus manuscritos e mapas, partida, mostra uma fenda grande na tampa onde ele lhe bateu, primeiro com o machado e depois com o punho, percorrendo a casa como o Anjo da Morte, destruindo toda e qualquer coisa que não conseguissem transportar consigo». In Brigid Hampton, O Astrólogo e o Rei, Porto Editora, 2022, ISBN 978-972-003-487-8.

Cortesia de PortoE/JDACT

JDACT, Brigid Hampton, História, Conhecimento, João II, Cartografia, Literatura,