quarta-feira, 29 de junho de 2022

Infante dom Pedro. Isabel Machado. «O grande terreiro em frente ao Tejo tornara-se uma vastidão de euforia. Ao invés dos pregões dos vendedores e do regateio dos fregueses nas bancas de pescado e das hortaliças…»

 

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Quarenta e quatro anos antes. Lisboa, Out0no de 1405

«O rei dom João de Avis casava a infanta Beatriz, a filha que nascera bastarda, com um grande de Inglaterra, e dera folgança ao povo, com uma celebração de vários dias. Havia muito que a capital do reino não se via com aquele esmero de asseio e sinais de abastança. Varreram-se as ruas, bem escaroladas e passadas a várias águas, para que não restasse vestígio algum da habitual imundície, e só se visse o que podia comprazer o rei, a fidalguia, o clero e os enviados ingleses. Arcos de folhas alindavam as sacadas do casario e as ruas da maior urbe do reino, como em dias de procissão. As flores do Outono tapavam de tons garridos as fachadas murchas pela pobreza do desleixo continuado e, das varandas, pendiam as colchas mais lustrosas que o povo encontrara na fundura das suas arcas, desprovidas de quase tudo.

Escorraçaram-se as meretrizes, para não ferirem a vista d’el-rei e o pudor da rainha, dona Filipa Lencastre, e ocultavam-se os mendigos, para não trazerem à lembrança do monarca o depauperado tesouro real, por conta dos anos de guerra com Castela, cujas tréguas só tinham sido alcançadas havia três anos. Também não faltava por que pedir naqueles dias de fartura, em que se assavam bois nos espetos de rua, que as mãos do rei de Avis eram largas, quando se tratava de entreter em dias de festa.

O grande terreiro em frente ao Tejo tornara-se uma vastidão de euforia. Ao invés dos pregões dos vendedores e do regateio dos fregueses nas bancas de pescado e das hortaliças trazidas dos arrabaldes da cidade, a algazarra era de júbilo, com exibições de malabaristas e saltimbancos, jogos de paus, até largada de touros houvera, para animar o povo. As gentes associavam, assim, a vista do soberano com a abundância, uma combinação bem calculada por um monarca que ascendera ao trono a pulso e também por vontade do povo. E o amor dos portugueses por aquele rei era grande.

Dom João, o primeiro de seu nome, trouxera-lhes a paz e a garantia de que o trono de dom Afonso Henriques permaneceria com um rei português, iniciada a nova dinastia de Avis. Por conta do desvairo e da morte precoce do rei anterior, dom Fernando, que deixara a regência entregue à odiada rainha, dona Leonor Teles, viveram-se dias negros em Portugal quando a viúva renunciou à regência a favor da filha, dona Beatriz, casada com o rei de Castela.

Filho bastardo do rei dom Pedro, pai de dom Fernando, e de Teresa Lourenço, filha de um comerciante lisboeta, com quem o monarca afogara as mágoas depois do assassínio de Inês de Castro, dom João era, por aquela altura, um jovem mestre da Ordem Militar de Avis. Viu-se chamado a reclamar o direito ao trono, com vasto apoio popular, e esse longo caminho começara ali mesmo em Lisboa, cidade para sempre grata ao seu coração, onde fora aclamado Regedor e Defensor do Reino, antes de ser alçado rei nas Cortes de Coimbra». In Isabel Machado, Infante Dom Pedro, O Regente Visionário que o Poder quis Calar, 2021, Editorial Presença, Manuscrito, 2021, JSBN 978-989-897-590-4.

 Cortesia de EPresença/Manuscrito/JDACT

 JDACT, Isabel Machado, História, Regente Pedro, Cultura e Conhecimento, Literatura,