A Ponte dos Suspiros. Os Sinais do Corpo
«A
Deus graças, que a tarde foi de festa. A música que não se fez ouvir na capela
cantaram-na os anjos nos corações dos noivos. Umas boas centenas de cruzados
farão a alegria da boda, doces e vinho no himeneu. Que sejam felizes... Vê se dormes...
As chaves na porta? A estas horas?... A luz das tochas iluminou a quadra. O
prisioneiro levantou-se, entravam os juízes.
Não
protelemos, disse um deles para Marco Quirini. Lede-lhe a sentença. O juiz leu
a sentença. Que dentro de vinte e quatro horas se saísse da cidade e dentro de
três dias abandonasse para sempre os estados de Veneza, sem réplica, sob pena
de galés perpétuas. A quem o descobrisse e prendesse em contravenção davam mil
cruzados. Poderia a sua vida correr risco daquela hora por diante. Que se fosse
em boa hora... Os juízes fizeram vénia, viraram costas e saíram. Tomai as
vossas coisas, disse o carcereiro, e vinde comigo. Vou acompanhar-vos até à
saída.
Por
uma pequena porta dos baixos saiu às traseiras do palácio ducal e da basílica
de São Marcos. Eram dez horas da noite, soprava um vento crespo que encrespava
as águas dos rios, que quase transbordavam. Caminhou lesto em direcção a San
Beneto. Quando lá chegou, já a água começava a alagar as margens e a atingir as
soleiras mais baixas e o rés-do-chão da casa não tardaria a estar inundado.
Jerónimo Migliori e as filhas, com a ajuda de Marco Túlio, andavam a remover
para cima os principais trastes... Subia o pajem as escadas com um pote ao ombro
esquerdo e outro na mão direita, quando o viu entrar. A largueza das espáduas,
acentuada pela extrema magreza, a pele sobre os ossos, o cabelo e a barba
tamalavez crescidos, os olhos metidos, as maçãs das faces levantadas, o nariz
comprido e um pouco afilado, os beiços delgados, o de baixo ressaindo, de
começo Marco Túlio não reconheceu o seu senhor. Mas, quando el-rei sorrindo: Marco
Túlio!, disse. Tão atarefado vos faz andar à água?
Meu
Senhor!, pousou ele os potes num degrau e desceu açodado a tomar-lhe as mãos.
Meu Senhor! Deixaram-vos sair! Ninguém sabia. Subi, subi. Estão na sala alguns
senhores portugueses..., e nomeava-os... À entrada da sala, o pajem, na grande
expectativa do encontro, ficou especado.
El-rei
parou também no limiar. Ao fundo uma grande lareira acesa lampejava clarões de
luz e bafos de calor no aposento. Em redor, alguns sentados, outros de pé,
conversavam em voz repousada.
É
isso que pensais, senhor dom Cristóvão? A Senhoria não pode, perante tão fortes
pressões e influências..., de tanta banda e tão altas pessoas... Espanha não dorme.
… amanhã ou depois... E porque não hoje?, disse da porta el-rei. Todos se voltaram
àquela voz. Senhores, disse Túlio solene: Sua Alteza! Ergueram-se dos assentos
e olharam a figura que avançava para eles, como visão, alumiada pelo luar das
chamas. Meu rei e senhor! rojava-se-lhe aos pés dom Cristóvão, já os outros se
curvavam em vénias e procuravam beijar-lhe as mãos. João de Castelobranco
inclinou levemente a cabeça duvidoso, não o reconhecendo, levantava el-rei dom
Cristóvão: Senhores, tende calma.
Meu
senhor, dizia João Castro, que magro vindes! Sentai-vos aqui à lareira. Marco,
trazei alguma colação para Sua Alteza. Não desejo comer, disse, sentando-se.
Tenho pressa de sair da cidade... e contou-lhes o teor da sentença. O
embaixador de Espanha, disse João Castro, conseguiu ainda botar veneno em tão
agra sentença que só o ânimo de Vossa Alteza o consegue suportar. As barbas
encanecidas, mas lembro-me muito bem de vós, dom João, e lançava os olhos em
redor. Folgo de ver que saístes com vida da batalha... E vós, tão jovem,
sois..., fitava dom Cristóvão.
Foi
dom João quem respondeu: É o senhor dom Cristóvão, filho segundo de vosso primo
o senhor dom António I, Prior do Crato, que Deus tenha em sua glória. Olhou-o
atentamente: Meu primo dom Cristóvão. Muito grato em ter-vos comigo. Sabeis que
sois parecido com vosso pai e com o infante dom Luís vosso avô? Permita Deus
que nas obras os semelheis também». In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros,
1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.
Cortesia de Difel/JDACT
JDACT, Fernando Campos, História, Literatura,