terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

Idade Média. Umberto Eco. «A própria separação de Oriente e Ocidente, consequência das migrações bárbaras, das expedições islâmicas, da separação e primado da Igreja de Roma em relação às orientais, da distinção cada vez mais nítida da Europa…»

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Hipóteses para uma periodização da Idade Média

«Especialmente se considerarmos na sua totalidade o cadinho dos povos e das civilizações que contribuíram para a formação inicial da Europa medieval, bem como os seus contactos recíprocos, até os limites do continente nos aparecem móveis e permeáveis, constituídos, como são, mais do que por barreiras, por zonas cujas partes mais remotas estão implicadas em recontros cada vez mais esporádicos.

A própria separação de Oriente e Ocidente, consequência das migrações bárbaras, das expedições islâmicas, da separação e primado da Igreja de Roma em relação às orientais, da distinção cada vez mais nítida da Europa em relação a Bizâncio, que constitui um traço distintivo da primeira Idade Média, não foi, contudo, tão nítida como se poderia crer por um exame que levasse em conta, principalmente, a redução das vias de comunicação e do tecido urbano, a decadência dos portos e do tráfego, o desaparecimento das escolas e o aumento das distâncias no plano político e cultural. Basta pensar que Carlos Magno e até os otões se aperceberam da necessidade de manter relações com Constantinopla, que os árabes, como é bem sabido, transmitiram aos europeus o seu saber e o antigo, que os muçulmanos foram por várias vezes chamados por cristãos a socorrê-los contra outros cristãos e concordaram frequentemente com os poderosos locais em lutar com os seus correligionários, que os mouros penetraram em vastos territórios, como a Península Ibérica e não só, com forças reduzidas e confiados no apoio de populações deprimidas e oprimidas e que não faltaram casos, alguns deles importantes, de casamento entre fiéis de religiões diferentes.

É exactamente nesta vertente que estão em curso os estudos talvez mais inovadores, que se propõem mostrar a permeabilidade do islão e contribuir para abater as barreiras religiosas e culturais hoje ventiladas, sem por isso renunciar a reclamar o relevo da específica tradição europeia, baseada numa particular pluralidade de formas sociais e políticas e na sua variabilidade.

Da Queda do Império Romano do Ocidente a Carlos Magno

A desagregação do Império Romano do Ocidente é o termo de um percurso histórico de longa duração, já reconhecível no século III, de regionalização dos territórios imperiais, que cada vez mais se configuram como zonas autónomas e não integradas. A deposição de Rómulo Augústulo em 476 é apenas um momento, talvez o mais visível no plano historiográfico, desta longa transição.

Tendências secessionistas

A fragmentação política do Império Romano não é o resultado directo da deposição do último imperador do Ocidente em 476, data convencional do início da Idade Média. Com efeito, já dois séculos antes se manifestaram tendências centrífugas na estrutura imperial: no decurso da crise do século III e em particular durante o reinado de Galieno (c. 218-278, imperador desde 253), o império encontra-se dividido em três grandes troncos autónomos.

No Oeste, a revolta de Póstumo (?-c. 269, imperador de 260 a 268) dá origem à constituição de um império gálico (formado pela Gália, a Península Ibérica e a Britânia) que dura 13 anos sob o próprio Póstumo, Mário (?-269, imperador desde 268), Vitorino (?-c. 270, imperador desde 268) e Tétrico (?-273, imperador desde 271). No Oriente, pelo contrário, o poderio económico-comercial de Palmira leva à constituição de um verdadeiro império centrado nas cidades caravaneiras, primeiro sob Odenato (?-267, rei desde 258) e depois sob Vabalato (? -273, rei desde 267), mas governado principalmente, segundo dizem as fontes, por Zenóbia, mulher do primeiro e mãe do segundo (rainha de 267 a 273). Só Aureliano (214/215-275, imperador desde 270) consegue recuperar os dois reinos secessionistas em 273 e reconstituir a unidade do império. Mas já a partir desse momento, e ainda mais durante o século IV, se mostra cada vez com maior evidência a presença de ímpetos centrífugos e, mais em geral, de uma regionalização em zonas cada vez mais autónomas umas das outras e menos integradas num conjunto.

São disso prova as várias usurpações, cada vez mais ligadas a um determinado território. O objectivo é, com frequência, a constituição de reinos secessionistas e o reconhecimento de uma autoridade igual à dos imperadores já existentes: é o caso, por exemplo, da rebelião de Caráusio (imperador de 286 a 293), que domina a Britânia e a Gália setentrional, herdadas na sua morte por Aleto (?-296, imperador desde 293) e depois por Constâncio Cloro (c. 250-306, imperador desde 293), mas também por Magnêncio (c. 303-353, imperador desde 350), Magno Máximo (c. 335-388, imperador desde 383) e Constantino III (?-411, imperador desde 407)». In Umberto Eco, Idade Média, Bárbaros, Cristãos, Muçulmanos, Publicações dom Quixote, 2010-2011, ISBN 978-972-204-479-0.

Cortesia de PdQuixote/JDACT

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