Roberto Antunes Palma Lobo, 1881-1916
«Recordei as palavras de Salvador
naquela tarde em Grândola: Há quem duvide de que o meu trisavô fosse o pai da
criança... Provavelmente, a suspeita nascera devido a este estranho registo.
Pedi a dona Fátima que me
fotocopiasse as três certidões, não sem antes reparar num pormenor. Nos três
registos, a testemunha era a mesma, um tal dr. Charles Scholes, decerto o
médico que assistira àquelas situações extremas. Era costume os registos serem
feitos por um médico naqueles tempos?, perguntei a dona Fátima. Não sei, meu
filho.
Contei-lhe a história e ela
sorriu e fez um ar matreiro. Debruçou-se no balcão, rechonchuda e alegre,
aproximou a sua cara da minha e disse-me, baixando a voz, como se me fizesse
uma confidência secreta: Sabe, meu filho, não eram só as pretas que
engravidavam dos brancos, às vezes as portuguesas também tinham filhos dos
pretos... Para mais, o marido morrera... Ergueu as sobrancelhas: Podia ser um
empregado da casa. Acha, perguntei. O que lhe valeu foi ter morrido ao dar à
luz, comentou ela. - Caso contrário, teria sido uma escandaleira...
Dona Fátima deu uma gargalhada
divertida e lá foi, bamboleando as suas formas redondas, até à máquina
fotocopiadora. Quando regressou, entregou-me as fotocópias e desejou-me sorte. Se
precisar de alguma coisa mais, meu filho, volte cá, que eu estou sempre às
ordens!
Saí do edifício excitado. A
acreditar no registo oficial, o primeiro dos Palma Lobo não era na verdade Lobo,
pois não era filho do marido de Efigénia, mas sim de um negro, o que fazia
nascer naquela família uma linhagem bastarda e, tal como Salvador insinuara,
vagamente pecaminosa... A lenda dos Palma Lobo arrancava com um episódio
arrasador, espectacularmente picante! Apeteceu-me de imediato telefonar para
Portugal, para relatar ao meu amigo as novidades, mas ele pedira-me que não
actuasse assim, e portanto fui nessa noite sair em Maputo, sozinho e
bem-disposto, com a sensação de que estava na posse de um verdadeiro segredo de
família. Mal eu sabia que era apenas o primeiro de muitos...
Quem seria o misterioso Kalanga
que colocara a sua semente no ventre da trisavó Efigénia? Passei a noite às
voltas na cama, a pensar neste intruso. Nas cartas do bisavô Roberto, que lera
em Lisboa, não existiam referências a nenhum Kalanga. E, nas fotografias que
vira, não notara nas suas feições nenhum vestígio da raça do seu suposto pai.
Era moreno, mas não tinha a tez especialmente escura, nem traços fisionómicos
que indicassem ser filho de um negro. Seria possível que nunca se tivesse
sabido quem era o seu verdadeiro pai? Mas, então, como explicar a vaga suspeita
de Salvador? Quem descobrira o pecado original dos Palma Lobo?
A meio da manhã do dia seguinte,
recebi um telefonema do professor Agostinho Chivunga. O historiador
explicou-me, na sua voz forte e pausada, que descobrira alguns livros que me
podiam interessar e sugeriu que passasse pelo seu gabinete da universidade a
meio da tarde. Assim fiz. Quando lá cheguei, aquele homem enorme entregou-me
dois antigos livros. O primeiro intitulava-se Relato das Ocorrências
Marítimas nas Costas de Moçambique, 1860-1890, e o segundo tinha como
título A Vida Social e Política na Colónia de Moçambique entre 1870 e 1900.
Agostinho Chivunga explicou que ambos os autores eram portugueses que tinham
vivido em Lourenço Marques na época e, portanto, os relatos deviam ser
fidedignos. E acrescentou: Penso que nos dois casos há algumas pequenas
referências à família Palma Lobo. Regressei ao hotel e deitei-me na cama do meu
quarto, decidido a devorar os dois manuscritos. Comecei pelas ocorrências
marítimas. Tratava-se de uma descrição do comércio nas costas da colónia, com
referências às embarcações, à actuação dos barcos de guerra dos variados
países, e também aos piratas. Pude confirmar que a sua presença era habitual, e
que produziam elevados estragos à navegação. A dada altura, o meu coração
agitou-se quando se me deparou uma referência a um contrabandista famoso
chamado... Roberto Carvalho Lobo.
O trisavô de Salvador era um
mercador que vivia em Moçambique, por volta de 1880. Negociava com os
pescadores, com as tribos da costa, com os alemães da Tanzânia e os bóeres da
África do Sul. Numa prosa nada abonatória, o autor do livro relatava que
Roberto se metia em trafulhices e escaramuças e era muito dado à bebida. Com
pouco mais de trinta anos casara com uma portuguesa nascida na Beira, chamada
Efigénia, de quem não tinha filhos. Viviam em Lourenço Marques, mas Roberto
andava quase sempre no mar, nos seus comércios. Próximo do Natal de
1880, o negociante zangou-se com os seus associados piratas, pois estes
andavam-lhe a destruir os lucros, atacando os seus barcos em alto mar.
Já em 1881, o conflito agrava-se.
Certo dia, Roberto Carvalho Lobo sai de casa armado, acompanhado por um grupo
de colaboradores, aparentemente para desafiar os piratas. Três dias mais tarde,
de noite, regressou a casa ferido e a sangrar, em grande sofrimento. Segundo o
livro, o médico foi chamado de urgência, mas quando chegou já eram poucas as
esperanças de salvar Roberto. Tinha os pulmões perfurados por balas e morreu às
primeiras horas da madrugada do dia 28 de Janeiro, pondo fim a uma proveitosa
carreira de contrabandista, pois, como o cronista relatava, vivia num belo
palacete na zona sul da cidade, comprado com os ganhos dos seus lucrativos
comércios». In Domingos Amaral, Já Ninguém Morre de Amor, Oficina do Livro, 2008, ISBN
978-972-461-802-9.
Cortesia de OficinadoLivro/JDACT
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