sábado, 17 de fevereiro de 2024

A Sátira na Literatura medieval Portuguesa (séculos XIII e XIV). Mário Martins. «Tem agilidade e graça, esta cantiga. Mas a que segue tem fúria: Quem passou a serra e não quis servir a terra, maldito seja! O que levou dinheiros e não trouxe cavaleiros, maldito seja!»

jdact

«Pero Mafaldo vivia no século XIII e deve ser contado entre os trovadores alfonsinos da côrte castelhana. Escreveu um serventês a despedir-se da verdade e poetou contra Pero de Ambroa e a famigerada Balteira. Pero Mafaldo, ironicamente, declara que irá mudando e mentindo. Toda a gente faz o mesmo. Falar verdade ao amigo? Não! Quem mente ganha com isso. Juro, pois, e digo que vou separar-me da verdade e querer mal a quem bem quero. Hei-de prosperar assim, como cavaleiro que sou. Que hei-de eu fazer, se a verdade para nada me serve nem aumenta a minha honra? Dai-me um conselho, por caridade. Assim vai a minha vida: Se minto ao meu amigo e ao meu senhor, medra o meu proveito e cresço em importância. Sempre a eterna ironia: só medram os malandros e os hipócritas.

Um trovador desconhecido, mas de elevada categoria técnica e boa inspiração, deixou-nos uma poesia híbrida, de cantar de amor e de maldizer, contra o mundo e os homens. Também ele se lembra dos bons velhos tempos: Quem viu o mundo de antigamente e o vê agora, que há-de querer, senão desterrar-se algures? Mas o mundo é só um e este é falso. Para onde foram a mesura e a grandeza? Onde pára a verdade? Quem é leal ao seu amigo? Que se fez do amor e do trovar? Porque anda a gente triste e sem cantar? Ainda assim, vivo por amor duma senhora a quem muito quero, dos tempos em que amor havia. Fiquem, pois, a saber porque não me vou algur esterrar, / se poderia melhor mund’achar. E este pensamento vai batendo no final de cada estrofe, como condenação inapelável dos tempos que já não são nossos.

Até aqui, temos a impressão dum cortejo poético de velhos pranteadores. Contudo, esse cortejo não pára na Idade Média e salta aos olhos, por exemplo, na França do século XIX, mesmo entre escritores audazes e criadores. Alfred Musset condenava a geração nova por ser inculta, sans gaitê et sans amour. Chateaubriand escrevia, em 1831: Tout paraît usé, art, littérature, moeurs, passion; tout se détériore.

Lamartine afinava pelo mesmo diapasão e declarava que a França apodrecia numa esterqueira e tudo se desgastava e morria. Eles não pressentiam, entre tantos outros escritores, o advento de Baudelaire e do frisson nouveau que depois faria estremecer Victor Hugo.

Afonso X e os Soldados

Afonso X, o Sábio, está no centro dum ciclo satírico, onde a poesia é meio de ataque e de defesa, como os panfletos de hoje em dia. Atacou, atacaram-no. E cada um tinha, em geral, as suas razões e os seus pontos fracos. Às vezes, nada tão lúcido como o ódio.

Ainda infante, Afonso X troça dos maus conselhos do mordomo Rodrigo e dos peões todos calvos e sen lanças e con grandes çapatões. Os versos do rei valiam mais do que esta peonagem. E a sua indignação desafoga-se contra os que recusaram acompanhá-lo na guerra, ao sul, contra os muçulmanos:

Nunca eu cinja espada em boa bainha, se Pero Espanha, ou Pero Galinha, ou Pero Galego forem comigo! Outrem me acompanhará. Mendo Candarei pretextara também qualquer dificuldade e não fora com ele. Fuão deixou-o sozinho na guerra da Andaluzia e o rei sentia vontade de mandar ao demo a honra deste mundo, as armas e o batalhar. O que faz chorar um homem não é brincadeira nenhuma! Chorar e rir, por exemplo nesta sátira contra os guerreiros de menor categoria (coteifes), alguns deles a tremer no meio do Verão, diante dos cavaleiros mouros de Azamor:

O genete

pois remete

seu alfaraz corredor:

estremece

e esmorece

o coteife con pavor.

[…]

Vi coteifes de gran brio

eno meio do estio

estar tremendo sen frio

ant’os mouros d’Azamor;

e ia-se deles rio

que Auguadalquivir maior

Tem agilidade e graça, esta cantiga. Mas a que segue tem fúria: Quem passou a serra e não quis servir a terra, maldito seja! O que levou dinheiros e não trouxe cavaleiros, maldito seja! O que recebeu grande soldada e nunca fez cavalgada, se é rico-homem ou há mesnada, maldito seja! Não se trata de cantiga para rir.

Temos, aqui, uma invectiva, algo da maldição dum profeta atraiçoado e sozinho. Invectiva cheia de troça, como aliás noutra cantiga quase logo a seguir: Quem da guerra levou cavaleiros e foi guardar dinheiros à sua terra; quem não dava pão a comer aos soldados; quem, por medo, foi para casa beber vinho; quem fugiu da fronteira ou andou a roubar os mouros e foi para a sua terra roubar cabritos, esse non ven al maio. Quer dizer, não vem à revista da tropa, ao alardo. Iam para a guerra a fingir. E alguns levavam pendão, mas não levavam caldeira. N In Mário Martins, A Sátira na Literatura medieval Portuguesa (séculos XIII e XIV), Biblioteca Breve, Série Literatura, volume 8, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Centro Virtual Camões, 1986.

Cortesia de Biblioteca Breve/JDACT

JDACT, Mário Martins, Literatura, Cultura e Conhecimento, Instituto Camões,