A Ponte dos Suspiros. Os Sinais do Corpo
«Chegava
também, de Paris, Diogo Manuel Lopes, com seu criado francês Aloé. Vinha como
embaixador de França, com as credenciais competentes para se apresentar perante
a Senhoria. Acompanhava-o Sebastião Figueira, que servira na Índia, combatera
em Alcácer onde caíra prisioneiro e, resgatado, emigrara para Paris após a
refrega de Alcântara. Era portador de mensagens dos Estados Gerais dos Países
Baixos e cartas do príncipe Maurício Nassau e de dom Manuel de Portugal para o doge.
Chegava
ainda Cipriano Figueiredo, herói da resistência da Ilha Terceira aos
Castelhanos, que el-rei António I fizera conde de São Sebastião... Não percamos
tempo, disse Cristóvão. Solicitemos audiência à Senhoria. Não no-la poderá
negar. E não negou. Foram recebidos no salão das recepções solenes, ouvidos com
atenção e respeito protocolares e obtiveram do doge a promessa de que o
Conselho dos Dez resolveria com presteza o caso do prisioneiro. Ao
retirarem-se, frei Estêvão, que os acompanhara, deu-se conta de que se cruzavam
com o embaixador de Espanha, que vinha subindo a escadaria com semblante
pesado.
Vai
contrapesar com ameaças pensou. Para que lado penderá a balança da Senhoria?
Dois
anos e vinte e um dias. Não dizeis que hoje são quinze de Dezembro do ano de
mil e seiscentos? É há quanto tempo me tendes preso. E ainda me chamais a
perguntas? Não bastaram as que já tantas vezes fizestes? O juiz Marco Quirini,
sem abrir o carrego do rosto, dirigindo um olhar conivente aos outros juízes,
disse: Vimos buscar-vos para uma pequena cerimónia na capela. Uma cerimónia?
Mas hoje não é dia nem esta é a hora, tão tardia, da costumada missa dos
presos. Vinde. Logo vereis.
À
porta da câmara o carcereiro sorriu-lhe desdentado, quando ele passou. Teimais
então em afirmar que sois...?. ia o juiz a perguntar enquanto seguiam por um
longo corredor.
Não
teimo. respondeu. Vós é que me obrigais a repetir a verdade, apesar de a
saberdes. Estais cansados de a ouvir? Fechai os ouvidos, que a vou reiterar:
eu... sou... Está bem, está bem, cortou Quirini. Não é a isso que viemos. A
Senhoria, tocada pela vossa disposição de quererdes casar duas órfãs venezianas
da esmola do vosso prato..., da minha miséria..., delegou em nós a efectivação
do acto. Os noivos esperam-nos na capela com o sacerdote...
Folgo
de saber que a Senhoria deu consentimento. O doge recomendou-nos que
estivéssemos presentes e fôssemos, além de vós, os padrinhos. O arcebispo de
Espálato, sabendo do caso, rogou-lhe que aceitasse como oficiante o seu
secretário, o cónego Battista.
Caminharam
em silêncio alguns momentos e, antes de chegarem à porta da capela, ao fundo do
corredor, o juiz acrescentou com voz grave: Mais ninguém foi autorizado a
assistir senão nós e o carcereiro. Os guardas ficam de serviço à porta. Não
tomeis como abrandamento do nosso ministério de juízes a nossa presença. Não
tem nada a ver uma coisa com a outra. Estais a prevenir-me para a severidade do
vosso julgamento? E quando será esse julgamento? Começo a desesperar de que o despacheis.
Marco
Quirini não respondeu e, os semblantes compostos para o recolhimento do lugar e
da função, entraram na capela. A cerimónia foi simples e rápida. Assinados os
termos do matrimónio, os guardas e o carcereiro acompanharam o prisioneiro aos
seus aposentos.
Não
demorou a noite a cair no quarto mal alumiado. Pão e água,.., pão e água...
Deitemo-nos. Vê se dormes». In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros,
1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.
Cortesia de Difel/JDACT
JDACT, Fernando Campos, História, Literatura,