segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

Já Ninguém Morre de Amor. Domingos Amaral. «… o maior segredo, e parecia torturada de angústia, à beira de perder a razão. Como explicação, o dr. Scholes avançava com a hipótese de Efigénia estar grávida do marido há mais tempo do que pensava»

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Roberto Antunes Palma Lobo, 1881-1916

«Reflecti alguns minutos sobre o que lera, e continuei depois à procura de outras referências, mas naquele livro não encontrei mais. Abri então o segundo livro, uma descrição sobre a colónia portuguesa que habitava a capital moçambicana nos últimos trinta anos do século XIX. O português era um pouco gongórico e nem sempre muito objectivo, mas o relato parecia-me fidedigno. No entanto, ao longo das primeiras cento e cinquenta páginas não encontrei nenhuma referência útil. Até que, inesperadamente, o autor se refere jocosamente à história de uma tal Desmaiada, que morrera ao dar à luz um filho, e que jurava não saber quem era o pai da criança.

Seria Efigénia a Desmaiada?

Umas páginas à frente, o cronista voltava a falar na Desmaiada, desta vez no âmbito de um capítulo sobre miscigenação com os locais. Segundo ele, uma senhora de nome Efigénia Palma, casada com um pirata português que morrera assassinado, tentara convencer a colónia de que não sabia de quem engravidara! O relato prosseguia, recordando que o marido da senhora em causa morrera mais de nove meses antes do nascimento do filho, e que ela sempre dissera que desmaiara na noite da morte do marido, e que alguém, misteriosamente, a tinha engravidado, aproveitando-se do facto de ela estar desfalecida.

Como era óbvio, o cronista não acreditava naquela versão, e acrescentava que, nove meses mais tarde, tornou-se evidente que o pai dela era um criado de Efigénia. A criança tinha marcas de raça negra, em locais pouco próprios, como reparara o médico, o sr. dr. Charles Scholes. Fora ele quem, depois de interrogar os criados, descobrira ter sido um deles, um tal Kalanga, que engravidara a senhora.

Fiquei boquiaberto com a descrição. Pelos vistos, aquele episódio era motivo de chacota na época, sendo apresentado como exemplo de uma trapaça feminina. Efigénia era descrita como uma mistificadora inventiva, que tentara esconder as suas relações adúlteras com um obscuro empregado negro. O único pormenor que não ficava esclarecido eram as marcas evidentes de raça negra, em locais pouco próprios. De que falava o cronista? Nas imagens que vira de Roberto Antunes não existiam essas evidências, e obviamente que aquela referência a locais pouco próprios era sugestiva de que se tratava de marcas que provavelmente não seriam captadas pela objectiva de nenhum fotógrafo...

Como desvendar esta nova questão? Não havia mais nada nos dois livros que me pudesse elucidar sobre pormenores desta natureza. No dia seguinte, devolvi ao professor Chivunga os dois exemplares emprestados. Agradeci-lhe a ajuda, e fiz um pequeno resumo das descobertas. Ao ouvir o nome do dr. Charles Scholes, o historiador franziu a testa: Um inglês, não era? Dirigiu-se ao seu computador, enquanto ia dizendo: Esse nome não me soa estranho. Deixe-me aqui fazer uma pequena busca... Sentou-se e teclou o nome do inglês. Esperei até que ele exclamou: Cá está! O que descobriu? Há um livro escrito pelo próprio médico. São os relatos dos casos que tratou enquanto viveu em Moçambique. É em inglês, mas há um exemplar na Biblioteca Nacional. Sabe onde é?

Na manhã do dia seguinte, sentei-me na grande sala da biblioteca, com o livro do médico inglês aberto à minha frente. Era um inventário dos principais casos que tinha tratado durante a sua estada em Lourenço Marques, entre 1875 e 1885. Listava uma profusão de doenças e centenas de pacientes. Malárias, cóleras, sífilis, tuberculoses e muitas outras mazelas eram descritas com algum pormenor, bem como partos, apendicites ou outras operações.

A dada altura, o dr. Charles Scholes narra a morte de Roberto Carvalho Lobo, confirmando que ele sucumbira na sequência dos ferimentos de balas, num pulmão e no abdómen, perdendo muito sangue. Quando chegara a sua casa, já nada havia a fazer pelo pobre homem, a não ser aguardar a sua morte. Numa curta nota final, o dr. Scholes referia que uma comoção muito forte se apoderara da esposa, Efigénia, tendo ela desfalecido e perdido os sentidos durante toda a noite.

Uns meses depois, uma nova entrada no livro dedicava-se a Efigénia. O médico, cuja escrita espelhava a surpresa que o episódio lhe deixara no espírito, fora chamado de novo à casa da senhora, para certificar a sua inesperada gravidez. Efigénia, que andava de luto, confessara-lhe que se tratava de uma gravidez impossível, pois ela não dormira com o marido nos últimos meses antes da sua morte. Portanto, não podia estar grávida! Embora espantado com aquele relato, o dr. Scholes confessava que Efigénia lhe parecera honesta e profundamente perturbada por aquele estranho facto, quase se comparando a Nossa Senhora, que concebera por milagre. Pedira-lhe, aliás, o maior segredo, e parecia torturada de angústia, à beira de perder a razão. Como explicação, o dr. Scholes avançava com a hipótese de Efigénia estar grávida do marido há mais tempo do que pensava.

Trinta páginas à frente, o dr. Scholes fazia o relato do parto da criança. Notando que fora uma gravidez complexa, que enfraquecera muito uma mãe cujo espírito já estava debilitado pela angústia de não compreender como concebera, o dr. Scholes relembrava a extrema complexidade do nascimento da criança, que demorara muito tempo a dar a volta dentro da barriga da mãe, provocando a esta várias hemorragias e muita dor. Para mais, nascera com o cordão umbilical enrolado ao pescoço, o que quase a asfixiara e muito contribuíra para o enfraquecimento da mãe. Efigénia foi vítima de inúmeras infecções e acabaria por falecer apenas vinte e quatro horas depois do nascimento do filho, para grande desalento do dr. Scholes». In Domingos Amaral, Já Ninguém Morre de Amor, Oficina do Livro, 2008, ISBN 978-972-461-802-9.

Cortesia de OficinadoLivro/JDACT

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