quarta-feira, 10 de agosto de 2022

A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «Há aqui qualquer coisa que me não parece curial. Quê? Afinal, porque o prendestes? De que o acusais? Ele é réu de que crime?»

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O Sósia

«(…) Parece que a Senhoria procedeu assim a instigação do embaixador de Espanha. E como poderia o embaixador de Espanha saber?, perguntou frei Estêvão. Nem quero pensar, disse frei Crisóstomo com ar grave, que entre nós haja um traidor. Pode lá ser!, exclamou Pimentel levando a mão ao punhal. Teria de se haver comigo. E comigo, disse Pessoa. Tens razão, Pimentel, secundou Nuno Costa. Não pode ser. Talvez, antes, tenha havido inconfidência saída de casa do arcebispo... E lançava aos companheiros um olhar sagaz. Vou à Senhoria, disse Frei Estêvão. Hei-de falar com alguém do Conselho. Quero saber o que se passa. No palácio o juiz Marco Quirini recebeu-o com solicitude, disse que o processo estava confiado a mais três juízes, além dele, e que seguia com todas as cautelas dada a gravidade e o melindre da situação. Queremos honestamente esclarecer a identidade do preso e apurar a verdade. Temos-lhe feito constantes interrogatórios... E ele?..., afirma e confirma o que vós bem sabeis. Não me conformo, disse frei Estêvão. Há aqui qualquer coisa que me não parece curial. Quê? Afinal, porque o prendestes? De que o acusais? Ele é réu de que crime?

Visivelmente embaraçado, Marco Quirini respondeu: Ele foi intimado pela Senhoria a, no prazo de oito dias, sair dos territórios da República. Não obedeceu. E que crime cometeu ele para ser expulso da República?... Não respondeis. Respondo eu: o crime de afrontar a Espanha. Examinamos o caso com isenção... Sob a pressão do embaixador castelhano. Não nos deixamos conduzir por qualquer influência. Se chegardes à conclusão de que ele é um embusteiro..., será condenado. Se finalmente acreditardes que ele é o rei de Portugal... Teremos de enfrentar a inimizade da Espanha. Da Espanha?, exclamou frei Estêvão levantando-se. E a França? E a Flandres? E a Inglaterra?... Marco Quirini acompanhou-o à porta: Poderei dar-vos um conselho? Agradeço-vo-lo. Ide a Portugal. Procurai obter dados, sinais, indícios, traços concretos da identidade de el-rei Sebastião... Estai certo de que assim farei. Não desistirei enquanto não libertardes o meu rei.

A Ponte dos Suspiros

Gaivotas e pombas são as minhas visitas, às vezes um ou outro pardal pousa a medo no beiral do meu janelo de grades. Dou-lhes migalhas do meu pão. Habituam-se ao ritual e acabam por também eles serem o meu relógio dos dias intermináveis. A única vantagem deste meu cárcere é não se situar nos caboucos do palácio, mas alcandorar-se cá em cima no balouçar dos nevoeiros, sobre a ponte dos Suspiros. Sinto a maresia subir até mim, mas não vejo o canal nem a laguna. Esta experiência me faltava, ser encarcerado e ter a fragilidade ameaçada com a prepotência de interrogatórios, a iminência de torturas e talvez até de morte ignominiosa. Que fazer? Luto por que tempo e lugar se não alonguem de mim e me não deixem abandonado à impotência da angústia, suspenso sem amarras que me amparem a queda no aniquilamento. Acuda-me este pombo que agora aí pousou e se está meneando em vénias e arrulhos. Parece saudar-me. Estendo-lhe a palma da mão cheia de migalhas, como costumava em San Beneto, em casa de Jerónimo Migliori, com os pombos a esvoaçarem-me em redor, a pousarem-me nos ombros, nas mãos. Este não me estranhou. Será um deles e conhecer-me-á?» In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.

Cortesia de Difel/JDACT

 JDACT, Fernando Campos, História, Literatura,