quinta-feira, 11 de agosto de 2022

A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «Isso é verdade. Como o sabes? Não fui eu que ditei a carta e a assinei para o rei da Pérsia? Consultai os vossos arquivos... Janeiro de quinhentos e setenta e dois, se a memória me não atraiçoa...»

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A Ponte dos Suspiros

«(…) Anda cá, meu lindo! Olhinho vivo, matizado. Sou eu que te conheço. Esta peitaça de senhor dos ares, este azulado metálico de penas, estas listas cinzentas. Espera. Talvez tu me possas salvar, levar recado... Talvez pudesses, mas onde tenho eu papel, tinta, pena? Eu sei, eu sei. De bom grado me emprestavas uma das tuas penas..., mas o resto? Nem qualquer sinal de mim trago no corpo a não ser o próprio corpo com as cicatrizes da vida e a alma com as cicatrizes da morte..., nem anel, nem medalha, nem chancela... o rei nu... Afago-o, beijo-o: Vai, amigo, vai à tua vida e lanço-o ao ar pelo janelo e fico a vê-lo elevar-se com três vigorosas batedelas de asas, fazer um largo giro no céu e tomar rumo de San Beneto ali para trás na outra curva do canal.

De novo sozinho, recosto-me a tentar adormecer, mas a porta abre-se e aparece o carcereiro com dois meirinhos. Levanto-me e sigo-os. Conheço o que me aguarda. Transposta a saída, está-se numa pequena quadra que dá para a sala dita das torturas, estreita e alta, escura, ao meio um pequeno estrado de três degraus a que chega, suspensa do tecto, uma corda de que costumam pendurar os pacientes pelos pulsos para lhes arrancar a confissão. De um varandim de madeira assistem os juízes. Não é aqui que paramos, pois me têm poupado, por enquanto, a essa infâmia. Mas não posso impedir que me acuda o pensamento acusador de que também eu presidi com regozijo a morticínios de autos-de-fé e chacinas de judeus e exortei reis e príncipes a que fizessem o mesmo em terras de protestantes.

Morsega-me a consciência ou não será puro egoísmo, instintivo medo que arrepanha a pele?... Na sala seguinte, a do conselho, esperam-me os juízes para mais um interrogatório. Preside Marco Quirini, que sem rodeios me diz: Mais uma vez te exortamos a que nos digas o teu verdadeiro nome. Sebastião. Sebastião quê? Rei não tem apelidos. Sebastião primeiro de Portugal. Os juízes olhavam-se, irritado um, desolado outro, o presidente calmo e paciente. Sabes que há quem pense que és louco, que entraste num jogo perigoso... Nem sou louco nem é jogo. ... que te pode levar à morte... Se me matardes, cometereis um grande erro. Nós não te queremos matar..., mas sim que nos proves a verdade do que dizes. O teu caso pode ter implicações imponderáveis nas relações entre a Senhoria e Espanha... Esqueceis-vos de que era amistoso o trato entre o reino de Portugal e a vossa República... Não nos esquecemos, mas... Recordo-me de que pessoalmente escrevi à Senhoria em assentimento ao pedido por ela feito, através do embaixador António Tiepolo, para que Portugal exortasse o rei da Pérsia a auxiliar a liga dos Cristãos contra o Turco...

Isso é verdade. Como o sabes? Não fui eu que ditei a carta e a assinei para o rei da Pérsia? Consultai os vossos arquivos... Janeiro de quinhentos e setenta e dois, se a memória me não atraiçoa... Mostravam-se perturbados. Apresentava-lhes factos concretos das relações dos dois estados, falava-lhes de minúcias do crédito de Portugal nos bancos de Génova e Veneza, do comércio das especiarias que da Índia vinha a Veneza, a Lisboa, a Antuérpia, à Hansa de Danzigue... Compreendia ser o receio que mostravam em todo este negócio desagradar à poderosa Espanha que dominava mais de metade da Itália...» In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.

Cortesia de Difel/JDACT

JDACT, Fernando Campos, História, Literatura,