NOTA: Afonso Henriques, nascido em 1109, filho do conde Henrique e de dona Teresa, neto de Afonso VI de Leão e primo direito de Afonso VII. Tem uma relação amorosa com Elvira Gualter, da qual nasceram duas filhas, Urraca e Teresa Gualter; e outra com Chamoa Gomes, de quem tem dois filhos, Fernando e Pedro Afonso. Será reconhecido com rei de Portugal, em 1143, em Zamora.
Viseu, Domingo de Páscoa, Abril de 1126
«(… ) Os convidados
emparelhavam-se, como era costume, comendo dois a dois de cada escudela de
prata. Embora estivesse ao lado de Chamoa, Paio Soares ficou furioso quando
compreendeu que era Afonso Henriques que formava par com a rapariga galega.
Irritado, o nobre portucalense foi obrigado a partilhar a sopa com o conviva à
sua direita, o pai de Chamoa, Gomes Nunes Pombeiro, enquanto escutava os
sussurros trocados pelos apaixonados. Podemos voltar a passear, sugeriu Afonso
Henriques, fixando os olhos verdes da rapariga. Chamoa corou, batendo as
pestanas. O príncipe amava-a, queria voltar a encontrar-se com ela, e sentiu o
coração acelerar. Nem queria acreditar no que lhe estava a acontecer, o seu
sonho de criança tornava-se realidade! Eufórica, sorriu e aprovou: Sim, iremos
ao rio da Loba.
Afonso Henriques mergulhou a
colher na escudela, enchendo-a de sopa e Chamoa imitou-o. Os dois encostaram os
ombros, sentindo o calor do corpo do outro, e ela riu-se, divertida e
enamorada. O príncipe levou a colher à boca, sorveu o líquido e depois
sorriu-lhe, mas a rapariga franziu a testa. Com a mão direita pegou numa
napeira, que estava pousada na mesa, e ergueu-a à boca de Afonso Henriques,
limpando-a enquanto dizia: Tenho de cuidar de vós. O príncipe piscou-lhe o olho
e acrescentou: Espero que a vida inteira. Chamoa riu-se e corou de novo, mas de
repente alguém lhe lançou um elogio, talvez Gonçalo ou mesmo o Braganção e ela
distraiu-se, enquanto continuava a comer a sopa. A seu lado, Afonso Henriques
reparou que a mãe estava atarefada a verificar se as pedras serpentinas mudavam
de cor quando mergulhadas nos caldos de amêijoa ou berbigão, vigiando possíveis
envenenamentos. Abanou a cabeça, e piscou-me o olho, enquanto eu notava que o
prudente Paio Soares não tornava público o seu agastamento, pois um desaguisado
com Afonso Henriques colocaria em risco a sua iminente promoção a mordomo-mor.
Em esforço, só vendo as costas de Chamoa, mordia o ciúme e conversava com o pai
dela sobre a caça aos ursos em Tui.
Na tenda, as agrestes palavras de
Teotónio começavam já a ser esquecidas, até porque o Trava, sempre sorrateiro,
pedira aos taberneiros que juntassem menos água ao vinho, como se fazia na
Galiza, e os efeitos sentiam-se, nobres e senhoras falavam mais depressa e riam
mais alto. A crueldade dos súbditos suspende-se quando são bem tratados. No
final do jantar, foram servidos o pão de ló e os biscoitos de flor de
laranjeira, e dona Teresa, que se poupara no vinho sabendo que ia discursar, levantou-se
e informou a alegre assembleia que Bermudo, marido de sua filha Urraca
Henriques, seria o novo governador de Viseu, o que originou as primeiras palmas
da tarde. O visado corou, ergueu-se e fez uma pequena vénia à sua antiga
esposa, agradecendo a honra, e depois beijou a actual na face, o que a deixou
também ruborizada. Preparava-se Bermudo para realizar um discurso de gratidão quando
dona Teresa, revelando o apreço que sempre tivera por ele, mandou-o, com um
gesto, sentar-se e calar-se, o que ele fez de pronto, mostrando a todos que
nada mudara no trato entre os antigos, mas malsucedidos, amantes.
De seguida, dona Teresa encarou
Paio Soares, que se levantou para que todos o pudessem ver, ao mesmo tempo que
sacudia do balandrau as migalhas e os bocados de comida, por forma a que o seu
reluzente tecido mais se realçasse. A notícia foi a esperada: iria ser o
mordomo-mor do Condado! O senhor da Maia executou uma vénia pomposa,
agradecendo o título ao mesmo tempo que exibia a vestimenta, provocando
risinhos em Chamoa. Terminadas estas proclamações, entraram na tenda jograis,
trovadores e músicos. Uma imediata tensão se apoderou de mim e dos meus irmãos
quando vimos aparecer Ordonho e Fruela. Contudo, os bobos galegos eram gordos
mas não estúpidos, e não repetiram as afiadas chalaças da véspera, brindando aquela
nobre plateia com cantigas de amigo e trovas célebres da Galiza. A dado
momento, relembraram El Cid, o valente combatente que décadas antes tinha
batido os árabes, e declararam-se orgulhosos por estar entre eles um homem
capaz de semelhantes feitos, uma óbvia e encomendada alusão a Fernão Peres
Trava, que sorria, satisfeito.
A um canto da sala, Ramiro e
Raimunda, cúmplices desde o dia anterior, observavam o florir do encantamento
de Afonso Henriques por Chamoa. No entanto, ambos repararam que a rapariga
galega parecia mais solta, talvez devido ao vinho, e sorria para os homens,
pois vários lhe haviam dito que era a mais bela da tenda». In Domingos Amaral, Assim Nasceu
Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN
978-989-741-262-2.