quarta-feira, 26 de junho de 2024

Dr. José Maria Rodrigues. Camões. A Infanta D. Maria (1521-1577). «sirva de exemplo claro meu tormento, com que todos conheçam claramente que quanto ao mundo apraz é breve sonho»

Cortesia de Publicações Foriente

Com a devida vénia ao Dr. José Maria Rodrigues (3.1761-06184643-2), Coimbra, 1910

Volta de Ceuta

«(…)

Vós, que escuitais em rimas derramado

dos suspiros o som, que me alentava

na juvenil idade, quando andava

em outro em parte do que sou mudado,

 

sabei que busca só, do já cantado

no tempo em que eu temia ou esperava,

de quem o mal provou, que eu tanto amava,

piedade, e não perdão, o meu cuidado.

 

Pois vejo que tamanho sentimento

só me rendeu ser fabula da gente

(do que comigo mesmo me envergonho),

 

sirva de exemplo claro meu tormento,

com que todos conheçam claramente

que quanto ao mundo apraz é breve sonho.

(Soneto 101)

 

É certo que este soneto é, por assim dizer, uma tradução do 1.º soneto de Petrarca; mas não se segue d'ahi que nelle se não encontrem elementos autobiographicos do nosso poeta. Reproduzo o soneto do poeta italiano, porque é um elemento de interpretação para o de Camões.

 

Voi ch'ascoltate in rime sparse il suono

di quei sospiri ond'io nudriva il core

in sul mio primo giovenile errore,

quand'era in parte altr'uom da quel ch'i'sono;

 

Del vario stile in ch'io piango e ragiono

fra le vane speranze e'l van dolore,

ove sia chi per prova intenda amore,

spero trovar pietà, non che perdono.

 

Ma ben veggi'or si come ai popol tutto

favola fui gran tempo: onde sovente

di me medesmo meço mi vergogno:

 

e dei mio vaneggiar vergogna è'l frutto,

e '1 pentirse, e '1 conoscer chiaramente

che quanto piace ai mondo è breve sogno.

In Dr José Maria Rodrigues, Camões e a Infanta D. Maria, Separata do Instituto, Imprensa da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1910, há memória do Mal-Aventurado Príncipe Real Luís Philippe (3 1761 06184643.2), PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/.

Cortesia do AHistórico/UCoimbra/JDACT

 Camões, Didácticas, Infanta D. Maria, JDACT, Dr José Maria Rodrigues, Universidade de Coimbra, 500 Anos  de Camões,

Dr. José Maria Rodrigues. Camões. A Infanta D. Maria (1521-1577). «Porém, pois o destino trabalhoso, que me escurece a Musa fraca e lassa, louvor de tanto preço não sustenta…»

Cortesia de Publicações Foriente

Com a devida vénia ao Dr. José Maria Rodrigues (3.1761-06184643-2), Coimbra, 1910

Volta de Ceuta

«(…)

Como já fica dicto, esta egloga foi dirigida a dona Francisca de Aragão. Na egloga 5.ª, escripta na mesma occasião, e bem assim no soneto 190, allude também Camões á projectada epopea. Em Ceuta ainda não pensava nella, como se infere da epistola 1.ª, est. 23-35, e se vê do soneto 267, manifestamente contemporâneo desta epistola, e dirigido pelo poeta a um seu admirador, que também fazia versos:

 

Se a fortuna inquieta e mal olhada,

que a justa lei do ceu comsigo infama,

a vida quieta, que ella mais desama,

me concedêra, honesta e repousada.

 

Pudera ser que a Musa, alevantada

com luz de mais ardente e viva flamma,

fizera ao Tejo, lá na pátria cama,

adormecer ao som da lyra amada.

 

Porém, pois o destino trabalhoso,

que me escurece a Musa fraca e lassa,

louvor de tanto preço não sustenta,

 

a vossa, de louvar-me pouco escassa,

outro sogeito busque valeroso,

tal qual em vós ao mundo se apresenta.

 

Forçado a desistir dos seus altos pensamentos, não tendo podido conseguir que a menina dos olhos verdes tornasse a olhar para elle, ferido no coração e no amor próprio, o poeta viu-se, com vergonha sua, fabula da gente, começou a servir de assumpto á maledicência». In Dr José Maria Rodrigues, Camões e a Infanta D. Maria, Separata do Instituto, Imprensa da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1910, há memória do Mal-Aventurado Príncipe Real Luís Philippe (3 1761 06184643.2), PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/.

Cortesia do AHistórico/UCoimbra/JDACT

Camões, Didácticas, Infanta D. Maria, JDACT, Dr José Maria Rodrigues, Universidade de Coimbra, 500 Anos  de Camões,

Dr. José Maria Rodrigues. Camões. A Infanta D. Maria (1521-1577). «co prado em gentileza, por quem o pastor triste endoudecia, por a praia do Tejo discorria a lavar a beatilha e o trançado. O sol já consentia que saísse da sombra o manso gado»

Cortesia de Publicações Foriente

Com a devida vénia ao Dr. José Maria Rodrigues (3.1761-06184643-2), Coimbra, 1910

 Volta de Ceuta

«(…)

Passado já algum tempo que os amores

de Almeno, por seu mal, eram passados,

porque nunca Amor cumpre o que promette,

entre uns verdes ulmeiros apartado,

regando por o campo as brancas flores,

em lagrimas cansadas se derrete,

quando a linda pastora, que compete

co monte em aspereza,

co prado em gentileza,

por quem o pastor triste endoudecia,

por a praia do Tejo discorria

a lavar a beatilha e o trançado.

O sol já consentia

que saísse da sombra o manso gado.

 

Já acordado daquelle pensamento,

que tão desacordado sempre o teve, (ver nota)

viu por acerto o bem que incerto tinha;

e porque, donde o amor a mais se atreve,

alli mais enfraquece o entendimento,

não lhe soube dizer o que convinha.

(Egloga 3.ª est. 1-2).

 

NOTA: Relêa-se o bellissimo soneto 279, que começa:

Doce sonho, suave e soberano.

se por mais longo tempo me durára!

Ah! Quem de sonho tal nunca acordara,

pois havia de ver tal desengano!

 

Pois se até ao invocar a musa inspiradora para o poema épico que vai emprehender, se presénte que o som vem d'uma parte, mas que a pancada é em outra!

 

Em vós tenho Helicon, tenho Pégaso;

em vós tenho Calliope e Thalia

e as outras sete irmãs, co fero Marte.

Em vós deixou Minerva sua valia;

em vós estão os sonhos do Parnaso;

das Pierides em vós se encerra a arte.

Com qualquer pouca parte,

senhora, que me deis de ajuda vossa,

podeis fazer que eu possa

escurecer ao sol resplandecente;

podeis fazer que a gente

em mi do grão poder vosso se espante

e que vossos louvores sempre cante.

 

Podeis fazer que cresça de hora em hora

o nome Lusitano, e faça inveja

a Esmirna, que de Homero se engrandece.

Podeis fazer também que o mundo veja

soar na ruda frauta o que a sonora

cithara Mantuana só merece.

(Egloga 4.ª, est. 1.ª e 2.ª)

In Dr José Maria Rodrigues, Camões e a Infanta D. Maria, Separata do Instituto, Imprensa da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1910, há memória do Mal-Aventurado Príncipe Real Luís Philippe (3 1761 06184643.2), PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/.

Cortesia do AHistórico/UCoimbra/JDACT

Camões, Didácticas, Infanta D. Maria, JDACT, Dr José Maria Rodrigues, Universidade de Coimbra, 500 Anos  de Camões, 

Dr. José Maria Rodrigues. Camões. A Infanta D. Maria (1521-1577). «Não me negueis, se andais para negar-me, porque, se contra mi 'stais levantados, eu vos ajudarei mesmo a matar-me»

Cortesia de Publicações Foriente

Com a devida vénia ao Dr. José Maria Rodrigues (3.1761-06184643-2), Coimbra, 1910

Volta de Ceuta

«(…)

Amor, com a esperança já perdida,

teu soberano templo visitei;

por sinal do naufrágio que passei,

em lugar dos vestidos, pus a vida.

 

Que mais queres de mi, pois destruida

me tens a gloria toda que alcancei?

Não cuides de render-me, que não sei

tornar a entrar-me onde não ha saída.

 

Vês aqui a vida e a alma e a esperança,

doces despojos de meu bem passado,

em quanto o quis aquella que eu adoro.

 

Nelles podes tomar de mi vingança;

e, se te queres inda mais vingado,

contenta-te co as lagrimas que choro.

(Soneto 50).

 

Pensamentos, que agora novamente

cuidados vãos em mim resuscitais,

dizei-me: e ainda vos não contentais

de ter, a quem vos tem, tão descontente?

 

Que phantasia é esta, que presente

cada hora ante os olhos me mostrais?

Com uns sonhos tão vãos inda tentais

quem, nem por sonhos, póde ser contente?


Vejo-vos, pensamentos, alterados

e não quereis, de esquivos, declarar-me

que é isto, que vos traz tão enleados?


Não me negueis, se andais para negar-me,

porque, se contra mi 'stais levantados,

eu vos ajudarei mesmo a matar-me.

(Soneto 93).

Pois se nem mesmo em versos que se occupam ex professo da menina dos olhos verdes, Camões deixa de se referir aos seus passados amores!»

In Dr José Maria Rodrigues, Camões e a Infanta D. Maria, Separata do Instituto, Imprensa da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1910, há memória do Mal-Aventurado Príncipe Real Luís Philippe (3 1761 06184643.2), PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/.

Cortesia do AHistórico/UCoimbra/JDACT

Camões, Didácticas, Infanta D. Maria, JDACT, Dr José Maria Rodrigues, Universidade de Coimbra, 500 Anos  de Camões,

domingo, 23 de junho de 2024

A Esmeralda Partida. Fernando Campos. «Como é que sabes isso?, contou-mo meu aio Diogo Soares..., bem conhecia, respondeu o rei, o grande amor que mestre Guedelha lhe tinha e não duvidava ser a astronomia ciência boa e entre outras permitida e aprovada…»

jdact

O Rei de Marfim

«(…) Que me estás tu a cantar, mofino?, agastado que te mostravas! Vendo-te tão apaixonado, juntei duas folhas de papel, desenhei um tabuleiro e aproximei-me da mesa, o rei ralhava o moço chorava: Senhor, trago aqui tabuleiro e com um pouco de cera apeguei-o ao tampo da mesa. Logo te serenou a ira: Ora estais a ver? Exclamaste sorrindo a todos. Para que é trazer tabuleiro nem coisa nenhuma? Basta trazer Resende…, contar as tuas bondades, reconhecer como eras agradecido de qualquer coisa pequena que fosse..., e tentar compreender como é que um homem tão generoso podia dar criamento dentro de si àquela fera, bicho era a tua expressão, que te impelia a praticares actos tão temerosos e cruentos como os que levaste a cabo em tua vida. Como os que levaste a cabo em tua vida. Res dura et regni novítas me talia cogunt molirí, ouvi-te certa ocasião dizer. Res dura, era matéria grave, sim, essa que te coagiu a derramares tanto sangue pelo caminho. Como foi tudo isso possível? Aí vais tu, hirto, deitado na tumba, frio como a alma do gelo, à luz das tochas. Esperam-te diante três alcofas de cal virgem para te ajudarem a seres comido mais cedo. Tinhas tu sete meses morre-te a mãe lacerada de desgostos..., que vozes grita a ventania nos galhos das árvores? Parecem embuçados a arranhar ameaças nos refegos da noite..., paira sobre esta família o espectro da morte violenta e da bastardia..., joga o teu xadrez, rei, um trebelho, outro e outro e outro, cabeças coroadas, bispos, cavaleiros, peões humildes, as paredes cruas de castelos e de paços..., pretas ou brancas, meu irmão?, perguntava-te Joana. sentados à sombra de um carvalho, nos paços de Santo Elói. Sobre a mesa de pedra o tabuleiro. Vestida de dó, de costas à borda do tanque, alheada, a tia Filipa dava migalhas às pombas.

Tanto faz, escolhe tu, irmã. Prefiro  as brancas. É cor de bodas. dezasseis anos...  pretendes casar? É cor de outra coisa, ordena as tuas figuras, não queres começar o torneio? Não te praz a conversa, bem te entendo. o rei nosso pai deve ter sobre isso suas tenções. Andar, andar. Gosto do teu sorriso, apesar da tristeza dos olhos e de..., ora!  Estou pronto! Torneio e justas é comigo. Avança. Este é o rei Duarte..., nosso avô paterno? Então já sei que vou ganhar o jogo. Como assim? Após a morte do pai, nosso bisavô João..., primeiro deste nome. Tu serás um dia o segundo. Não quis o rei Duarte dilatar para depois do meio-dia a cerimónia do seu alevantamento nem sofreu aguardar melhor conjunção dos astros. Mestre Guedelha, seu físico e astrólogo, bem o avisava: Júpiter encontrava-se retrogradado, o Sol em caimento e havia no céu sinais de mau agouro...

Como é que sabes isso?,  contou-mo meu aio Diogo Soares..., bem conhecia, respondeu o rei, o grande amor que mestre Guedelha lhe tinha e não duvidava ser a astronomia ciência boa e entre outras permitida e aprovada, e estarem os corpos inferiores sujeitos aos sobrecelestes, porém sobre todos pairar a mão e a ordenança de Deus. Justa sentença é essa na verdade. O judeu profetizou então a el-rei um reinado curto e atribulado, o que veio a acontecer, como adiante se viu. Por isso te digo, irmã, que este jogo será breve..., e eu o ganharei. Como ganharás?, queres ver? Dizias manobrando com cuidado as pedras. Com o desastre de Tânger e o cativeiro do irmão Fernando... Joana tentava defender-se contrapondo os cavalos, as torres, os peões, que iam caindo uns atrás dos outros. Move os cavaleiros, os bispos, frecheiros, archeiros, besteiros o que quiseres, eu ganharei. olha! Aí está: o rei morreu..., e deslocaste o trebelho fatal.

 Oh! Pensam alguns que da amargura de lhe aparecer em insónias o corpo do irmão a apodrecer de maus tratos nas masmorras de Fez. Corriam boatos de que se lhe havia empeçonhentado uma ferida de um ombro ou havia aspirado veneno ao abrir de uma carta... Falas de outra luta? Tu, minha irmã, é que referiste esse rei de marfim como sendo o bom rei Duarte nosso avô. À roda dele giravam nobres senhores e esboçavam-se as lutas que ao depois se seguiram. Marfim, ébano..., eu sei. Encetaremos outra jogada, outras jogadas. Reveremos tudo, com a morte recente da nossa avó Isabel de Urgel fecha-se um círculo de tamanho ódio! Psiu! Falasse baixo! Tia Filipa podia ouvir pobre senhora de luto pela mãe... Tudo aí começou » voltou-se Filipa em lágrimas. “ não chores, minha tia! então? Levantava-se Joana a abraçá-la, a sentá-la ao pé de si, trinta e um anos secos e martirizados. Tudo aí começou... Abriu-se em soluços, e agora, de uma casa tão grande e tão feliz, só eu e a triste da minha irmã Catarina encerrada na clausura de Santa Clara...» In Fernando Campos, A Esmeralda Partida, 1995, Difel, Lisboa, 2008, ISBN 978-972-290-330-1.

 Cortesia de Difel/JDACT

D. João II, JDACT, Literatura, Saber, Fernando Campos,

A Esmeralda Partida. Fernando Campos. «Três léguas bem puxadas de Alvor a Silves, todo o teu destino infeliz no meu pensamento. Morreres abandonado, um tal rei! Ires aí às costas de mula, metido em quatro tábuas disfarçadas à pressa de estofos reais…»

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O Rei de Marfim

«(…) Terminado o casario, pelo adiantado da hora alguma gente vai-se deixando ficar para trás arrimada às paredes, os braços cruzados cingindo o próprio corpo transido da friagem que sopra das dunas e se escoa a zinir pelas ruelas estreitas. um pequeno grupo de mulheres chorosas ainda acena um pobre adeus, mas, com o decorrer da caminhada por trilhos rudes que sobem de leve a ladear a ribeira do Arade, aos gritos e carpidos sucede o silêncio de almas cansadas. Ouve-se apenas o som continuado do patear das cavalgaduras e do andar dos peões neste fúnebre seguir à luz das tochas. É como se eu aqui vá sozinho contigo pela última vez. Gosto das sendas solitárias abeiradas de pinheiros mansos e palmeiras africanas, das breves encostas de amendoeiras e alfarrobeiras, das figueiras que vergam até ao solo os ramos carregados de frutos roxos que pingam mel. Passam canaviais inclinados pelo suão. Amarelejam agora aqui ao lado, no lampejo dos brandões, como olhos de fogo a espiarem-nos no negrume, os pomos de um laranjal. Três léguas bem puxadas de Alvor a Silves, todo o teu destino infeliz no meu pensamento. Morreres abandonado, um tal rei! Ires aí às costas de mula, metido em quatro tábuas disfarçadas à pressa de estofos reais, aos solavancos por carreiros pedragulhentos no segredo da noite!... Ninguém se atreveu a clamar, embora a todos espantasse, que é uma vergonha o duque Manuel não estar presente ao teu saimento. Ninguém ousou gritar que foi uma infâmia a rainha Leonor não ter assistido ao esposo moribundo. Cada um de nós, no foro íntimo, busca encontrar explicação para zanga mais teimosa que a morte..., e os nobres senhores onde estão eles? Os poucos que te acompanham, teus próximos servidores, já nem avanço dizer teus fiéis servidores, sabe-se lá quem é que..., quando o caminho alarga achegam as montadas e cochicham apreensões ou..., assim que as veredas apertam, seguem em fila, calados, focinhudos, escoltados pelas caras vermelhas e suadas dos servos que se afadigam de facho em punho por igualar o andamento dos animais. Os outros, lá longe em seus castelos e palácios, aprestam o ouvido se nos ruídos do vento distinguem galopear de cavalo que, por paradas nas estradas do reino, tragam recado de esculcas de que tu já morreste. De manhã, sinos a dobrar a finado..., sinos algures a repicar regozijos..., em cada coração o amor ou o ódio..., no teu, Deus me perdoe e perdoa-me tu também, ambas as coisas. De onde te veio esse raiarem-se-te os olhos de sangue? Essa comissura descaída e raivosa dos lábios? Como a de tua irmã Joana. Que parecença! Que gana e força de alma num e noutro!... E no entanto que sorriso bondoso e aberto tantas vezes te surpreendi..., até para mim!... Caminhamos agora por um trecho de velha calçada romana com suas grandes lajes sulcadas pelo rodado de carroças de outros séculos. É mais vivo o patear dos cascos ferrados da cavalgada. Para lá do clarão dos archotes apenas se enxergam trevas, mas eu, que conheço esta paisagem, adivinho para além da planície a colina em que se ergue o castelo de Silves, de pedra rosada, o corpo esbranquiçado da sé catedral, as casas caiadas de fresco e, lá bem ao fundo, os contrafortes da serrania. Nunca me tinha acontecido olhar perfurando a escuridão com os olhos da memória. Vem a calhar, que todo o espírito se me vaza atrás a buscar as coisas passadas. Ainda há poucos dias descias tu, com toda a tua comitiva, a serra do Algarve, a pedir saúde às águas das caldas. sol a pino, vibravam alfarrobeiras e aloendros a zunideira das cigarras. Paraste para jantar junto de um ribeiro, à sombra de umas sovereiras.

Chegai-me o xadrez para eu espantar o sono, pediste depois de comer, estes médicos! prescrevem-me que beba algum vinho... É o mais aconselhável no caso presente, meu senhor, dizia o físico-mor. Dá-me sonolência e vindes-me com essa de que me faz mal dormir a sesta… Chegou o moço da guarda-roupa muito aflito: Senhor, a bolsa com os trebelhos... e então? Está aqui..., mas, põe aí. Senhor, o tabuleiro,.., o tabuleiro ... Já lá vai adiante com a cama..., por esquecimento...» In Fernando Campos, A Esmeralda Partida, 1995, Difel, Lisboa, 2008, ISBN 978-972-290-330-1.

Cortesia de Difel/JDACT

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quinta-feira, 20 de junho de 2024

Dr José Maria Rodrigues. Camões. A Infanta D. Maria (1521-1577). «De vontades alheias, que eu roubava, e que enganosamente recolhia em meu fingido peito, me mantinha. O engano de maneira lhes fingia…»

Cortesia de Publicações Foriente

Com a devida vénia ao Dr. José Maria Rodrigues (3.1761-06184643-2), Coimbra, 1910,

Em Lisboa

«Chronologicamente, a primeira poesia em que Camões se occupa da filha do rei Emanuel é, me parece, o soneto 134.

Apresentado á excelsa e gentil senhora e por ella afavelmente acolhido, o modesto escudeiro ficou deslumbrado !

No dia seguinte, o seu amigo João Lopes Leitão, pagem da lança do mallogrado principe herdeiro, e pessoa muito apreciada na corte, recebia estas confidencias:

Senhor João Lopes, o meu baixo estado

Ontem vi posto em grau tão excellente,

Que, sendo vós inveja a toda a gente,

Só por mi vos quiséreis ver trocado.

 

O gesto vi, suave e delicado,

Que já vos fez contente e descontente (1),

Lançar ao vento a voz tão docemente,

Que fez o ar sereno e sossegado.

 

(1) O poeta allude, naturalmente, a algum facto análogo (se não é o mesmo) ao que deu occasião a uns conhecidos versos de Andrade Caminha e á resposta de Lopes Leitão. Diz a rubrica, que precede esses versos: «A João Lopes Leitão, estando preso em sua casa, por entrar uma porta a ver as damas contra vontade do porteiro». P. de Andrade (Caminha, Poesias, p. 36 1 (Lisboa, 1791).

Eis como termina a resposta do jovial amigo de Camões:

Estou-me agora doendo

De quem tiver para si

Que é melhor andar vendo

Verduras, que estar aqui.

 

Ninguém haja dó de mi.

Por me ver nesta prisão ;

Hajam de meu coração.

Que vê tanto dano em si.

 

De vontades alheias, que eu roubava,

E que enganosamente recolhia

Em meu fingido peito, me mantinha.

O engano de maneira lhes fingia.

Que, despois que a meu mando as subjugava.

Com amor as matava, que eu não tinha

Porém logo o castigo que convinha

O vingativo Amor me fez sentir.

(Canção 2ª)

Nesta canção, cscriptu cm Ceuta, o poeta uttribue ao Amor a culpa tida manuelpelo joven, transcreverei algumas passagens de obras e documentos coevos e de escriptores modernos, as quaes constituem o melhor commentario ao soneto que fica reproduzido, especialmente aos versos 5 a 10. Começarei pela informação que, em carta de 21 de Janeiro de 1557, enviava a Carlos V o seu embaixador, Sancho de Córdova, que tinha vindo a Lisboa tratar da entrega da filha do rei Emanuel a sua mãe, a rainha D. Leonor, já então viuva também de Francisco L Repare-se que o diplomata espanhol chega a empregar palavras que também se lecm no soneto. «(La senora Infanta) es persona de grande entendimento y cordura, y mui reposada, y de poças palabras y bien dichas y de las valerosas personas que he visto». In Dr José Maria Rodrigues, Camões e a Infanta D. Maria, Separata do Instituto, Imprensa da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1910, há memória do Mal-Aventurado Príncipe Real Luís Philippe (3 1761 06184643.2), PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/.

 Cortesia do AHistórico/UCoimbra/JDACT

Camões, Didácticas, Infanta D. Maria, JDACT, Dr José Maria Rodrigues, Universidade de Coimbra, 500 Anos  de Camões, 

terça-feira, 11 de junho de 2024

Dr José Maria Rodrigues. Camões. A Infanta D. Maria (1521-1577). «E vendo-se depennndo. De puro penado morre. Se a queixumes se soccorre, lança no fogo mais lenha. Não há mal que lhe não venha»

Cortesia de Publicações Foriente

 

Com a devida vénia ao Dr. José Maria Rodrigues (3.1761-06184643-2), Coimbra, 1910


«Entre as encantadoras redondilhas de Camões figuram as duas voltas ao mote:

Perdigão perdeo a penna",

Não ha mal que lhe não venha.

Dizem ellas, num tom de accentuada melancholia:

Perdigão, que o pensamento

Subio a um alto logar,

Perde a penna do voar,

Ganha a pena do tormento.

Não tem no ar, nem no vento,

Asas com que se sostenha.

Não ha mal que lhe não venha !

Quis voar a uma alta torre,

 

Mas achou-se desasado;

E vendo-se depennndo.

De puro penado morre.

Se a queixumes se soccorre,

I.ança no fogo mais lenha.

Não há mal que lhe não venha !

 

O próprio perdigão depenado, que nem ao menos se podia queixar, sem lançar mais lenha no fogo, sem aggravar a sua situação, era o próprio Camões. O alto logar até onde subio o seu pensamento, a alta torre a que quis voar, era uma das mais nobres e mais sympathicas figuras femininas que teem vivido sob este bello sol de Portugal:

era a filha mais nova del-rei Emanuel, a infanta D. Maria (1).

NOTA: (1)

«É muito interessante a monographia de D. Carolina Michaelis de Vasconcellos a respeito da infanta D. Maria de Portugal (1521-1577) e as suas datnas (Porto, 1902).

Della transcrevo aqui a seguinte passagem: «De sangue real, herdeira da coroa, se não morresse um anno antes da catastrophe de Alcacer-Quebir, pertence á historia e teve biographos conscienciosos. Em creança e na flor da edade viu refulgir diante de seus olhos a coroa de França ; foi escolhida repetidas vezes para o throno imperial, orbis destinata império, outras tantas para o império de Hespanha. Acariciando sempre, no intimo do coração, este ultimo projecto, ficou ainda assim innupta, uma triste sempre-noiva. Este estado tragicomico que lhe foi imposto, mas que afinal acceitou com sublime altivez, aparentando tê-lo escolhido livremente, despertou a dolente sympathia dos coevos. E ainda hoje é capaz de suscitar a dos pósteros».

(2) Basta citar por agora os sonetos 27 e 193:

NOTA:

«Males, que contra mim vos conjurastes,

Quanto ha de durar tão duro intento ?

Se dura, porque dure meu tormento,

Baste-vos quanto já me atormentastes.

Mas, se assi porfiais, porque cuidastes

Derribar o meu alto pensamento,

Mais pôde a causa delle, em que o sustento,

Que vós, que delia mesma o ser tomastes.

E, pois vossa tenção com minha morte

E de acabar o mal destes amores,

Dai já fim a tormento tão comprido.

Assi de ambos contente será a sorte :

Em vós, por acabar-me, vencedores ;

Em mim, porque acabei de vós vencido».

 

«Erros meus, má fortuna, amor ardente.

Em minha perdição se conjuraram.

Os erros e a fortuna sobejaram,

Que para mi bastava amor somente.

Tudo passei. . . Mas tenho tão presente

A grande dòr das cousas que passaram,

Que já as frequências suas me ensinaram

A desejos deixar de ser contente.

Errei todo o decurso de meus annos ;

Dei causa a que a fortuna castigasse

As minhas mal fundadas esperanças.

De amor não vi senão breves enganos.

Oh ! Quem tanto pudesse, que fartasse

Este meu duro gcnio, de vinganças !»


In Dr José Maria Rodrigues, Camões e a Infanta D. Maria, Separata do Instituto, Imprensa da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1910, há memória do Mal-Aventurado Príncipe Real Luís Philippe (3 1761 06184643.2), PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/.

Cortesia do AHistórico/UCoimbra/JDACT

Camões, Didácticas, Infanta D. Maria, JDACT, Dr José Maria Rodrigues, Universidade de Coimbra, 500 Anos  de Camões,