O Rei de Marfim
«(…) Que me estás tu a
cantar, mofino?, agastado que te mostravas! Vendo-te tão apaixonado, juntei
duas folhas de papel, desenhei um tabuleiro e aproximei-me da mesa, o rei
ralhava o moço chorava: Senhor, trago aqui tabuleiro e com um pouco de cera
apeguei-o ao tampo da mesa. Logo te serenou a ira: Ora estais a ver? Exclamaste
sorrindo a todos. Para que é trazer tabuleiro nem coisa nenhuma? Basta trazer
Resende…, contar as tuas bondades, reconhecer como eras agradecido de qualquer coisa
pequena que fosse..., e tentar compreender como é que um homem tão generoso
podia dar criamento dentro de si àquela fera, bicho era a tua expressão, que te
impelia a praticares actos tão temerosos e cruentos como os que levaste a cabo
em tua vida. Como os que levaste a cabo em tua vida. Res dura et regni
novítas me talia cogunt molirí, ouvi-te certa ocasião dizer. Res dura, era
matéria grave, sim, essa que te coagiu a derramares tanto sangue pelo caminho. Como
foi tudo isso possível? Aí vais tu, hirto, deitado na tumba, frio como a alma
do gelo, à luz das tochas. Esperam-te diante três alcofas de cal virgem para te
ajudarem a seres comido mais cedo. Tinhas tu sete meses morre-te a mãe lacerada
de desgostos..., que vozes grita a ventania nos galhos das árvores? Parecem
embuçados a arranhar ameaças nos refegos da noite..., paira sobre esta família
o espectro da morte violenta e da bastardia..., joga o teu xadrez, rei, um trebelho,
outro e outro e outro, cabeças coroadas, bispos, cavaleiros, peões humildes, as
paredes cruas de castelos e de paços..., pretas ou brancas, meu irmão?,
perguntava-te Joana. sentados à sombra de um carvalho, nos paços de Santo Elói.
Sobre a mesa de pedra o tabuleiro. Vestida de dó, de costas à borda do tanque,
alheada, a tia Filipa dava migalhas às pombas.
Tanto faz, escolhe tu, irmã. Prefiro
as brancas. É cor de bodas. dezasseis
anos... pretendes casar? É cor de outra
coisa, ordena as tuas figuras, não queres começar o torneio? Não te praz a
conversa, bem te entendo. o rei nosso pai deve ter sobre isso suas tenções. Andar,
andar. Gosto do teu sorriso, apesar da tristeza dos olhos e de..., ora! Estou pronto! Torneio e justas é comigo. Avança.
Este é o rei Duarte..., nosso avô paterno? Então já sei que vou ganhar o jogo. Como
assim? Após a morte do pai, nosso bisavô João..., primeiro deste nome. Tu serás
um dia o segundo. Não quis o rei Duarte dilatar para depois do meio-dia a cerimónia
do seu alevantamento nem sofreu aguardar melhor conjunção dos astros. Mestre
Guedelha, seu físico e astrólogo, bem o avisava: Júpiter encontrava-se
retrogradado, o Sol em caimento e havia no céu sinais de mau agouro...
Como é que sabes isso?, contou-mo meu aio Diogo Soares..., bem conhecia,
respondeu o rei, o grande amor que mestre Guedelha lhe tinha e não duvidava ser
a astronomia ciência boa e entre outras permitida e aprovada, e estarem os
corpos inferiores sujeitos aos sobrecelestes, porém sobre todos pairar a mão e
a ordenança de Deus. Justa sentença é essa na verdade. O judeu profetizou então
a el-rei um reinado curto e atribulado, o que veio a acontecer, como adiante se
viu. Por isso te digo, irmã, que este jogo será breve..., e eu o ganharei. Como
ganharás?, queres ver? Dizias manobrando com cuidado as pedras. Com o desastre
de Tânger e o cativeiro do irmão Fernando... Joana tentava defender-se
contrapondo os cavalos, as torres, os peões, que iam caindo uns atrás dos
outros. Move os cavaleiros, os bispos, frecheiros, archeiros, besteiros o que
quiseres, eu ganharei. olha! Aí está: o rei morreu..., e deslocaste o trebelho
fatal.
Oh! Pensam alguns que da amargura de lhe
aparecer em insónias o corpo do irmão a apodrecer de maus tratos nas masmorras
de Fez. Corriam boatos de que se lhe havia empeçonhentado uma ferida de um
ombro ou havia aspirado veneno ao abrir de uma carta... Falas de outra luta? Tu,
minha irmã, é que referiste esse rei de marfim como sendo o bom rei Duarte
nosso avô. À roda dele giravam nobres senhores e esboçavam-se as lutas que ao
depois se seguiram. Marfim, ébano..., eu sei. Encetaremos outra jogada, outras
jogadas. Reveremos tudo, com a morte recente da nossa avó Isabel de Urgel
fecha-se um círculo de tamanho ódio! Psiu! Falasse baixo! Tia Filipa podia
ouvir pobre senhora de luto pela mãe... Tudo aí começou » voltou-se Filipa em
lágrimas. “ não chores, minha tia! então? Levantava-se Joana a abraçá-la, a
sentá-la ao pé de si, trinta e um anos secos e martirizados. Tudo aí começou...
Abriu-se em soluços, e agora, de uma casa tão grande e tão feliz, só eu e a
triste da minha irmã Catarina encerrada na clausura de Santa Clara...» In
Fernando Campos, A Esmeralda Partida, 1995, Difel, Lisboa, 2008, ISBN
978-972-290-330-1.
D. João II, JDACT, Literatura, Saber, Fernando Campos,