sábado, 29 de junho de 2024

A Esmeralda Partida. Fernando Campos. «Que as mandava criar com muito cuidado e diligência, doutrinar na bruta e maldita seita do sancarrão Mafamede e instruir em todas as boas artes militares: na cavalaria, no pelejar com toda a sorte de armas. Com que fim?»

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O Rei de Marfim

«(…) Falas de outra luta? Tu, minha irmã, é que referiste esse rei de Mmarfim como sendo o bom rei Duarte nosso avô. À roda dele giravam nobres senhores e esboçavam-se as lutas que ao depois se seguiram. Marfim, ébano... eu sei. encetaremos outra jogada, outras jogadas. reveremos tudo. com a morte recente da nossa avó Isabel de Urgel fecha-se um círculo de tamanho ódio! Psiu! falasse baixo! Tia Filipa podia ouvir pobre senhora de luto pela mãe...

Tudo aí começou  voltou-se Filipa em lágrimas. Não chores, minha tia! Então? Levantava-se Joana a abraçá-la, a sentá-la ao pé de si, trinta e um anos secos e martirizados. Tudo aí começou ..., abriu-se em soluços,  e agora, de uma casa tão grande e tão feliz, só eu e a triste da minha irmã Catarina encerrada na casa.

(…)

A Tempestade

No dia seguinte, a fúria do vento minguava e nós fomos costeando a Dalmácia, Argentina, Zara, Lissa, Meleda, Cúrsula, terras sujeitas umas a Veneza e outras à senhoria de Aragusa. Vinham-me à lembrança fragmentos de antigas e recentes leituras: a Dalmácia era a pátria de São Jerónimo e também do papa mártir São Caio, da parentela do imperador Diocleciano; Aragusa ou Ragusa, o antigo Epidauro, era ao presente dos Turcos e chamava-se Dobrónica, cidade grandíssima, rica, muito nomeada naquelas partes, terra de grandes tratos e mercadores, onde se fazem muitas naus, as maiores e mais grossas de todo o Levante. É daqui o nosso padre guardião, frei Bonifácio. Seguimos sempre ao longo da costa, o que amenizava a viagem, pois tinham nossos olhos com que se entreterem. Que montes seriam aqueles?, apontava frei Zedilho. Eu consultava o meu enquirídio e não demorava muito a identificá-los: eram os montes Acroceráunios, muito afamados na Antiguidade.

Ah! Deles fazia memória São Jerónimo no segundo prólogo da Bíblia, comentava o meu teólogo. Vinha depois a costa do Epiro, a que está ligada a Macedónia, pátria de Alexandre Magno, do qual tantas grandezas contam tantos escritores gregos e latinos.

As línguas de todas estas terras são muito diversas umas das outras, mas os Aragúsios e os Dalmacianos entendem-se bem entre si pela contínua comunicação. Os Albaneses e os Epirotas usam comumente o grego, mas, como presentemente estão submetidos aos Turcos, toda a gente principal e nobre fala a língua turca. Estas informações colhi-as eu de um marinheiro grego chamado Pérides, a quem frequentemente fazíamos perguntas quando queríamos saber alguma coisa.

Era muito sensível ao facto de a sua pátria grega estar sob o domínio turco. Isolava-se amiúde junto à amurada a olhar a linha da costa passar, os montes e vales, as lágrimas a desfiarem-lhe pelas faces e cantando baixinho, só para si, saudosas melopeias que aprendera em menino. Ansiava pelo dia em que a Grécia sua bem-amada recobrasse a independência. Mal adivinhava eu, naquele tempo, que também me estava destinado ter, a respeito do meu país, essa dolorosíssima experiência!... Contava-nos ele factos nunca ouvidos.

De todas as partes e províncias e em especial do Epiro, da Macedónia e da Albânia, todas as pias de baptizar eram obrigadas cada ano a dar certas crianças de tributo ao grão-turco... Dar crianças ao turco?, admirava-se, escandalizado, frei Zedilho. Para quê?, secundava eu. Que as mandava criar com muito cuidado e diligência, doutrinar na bruta e maldita seita do sancarrão Mafamede e instruir em todas as boas artes militares: na cavalaria, no pelejar com toda a sorte de armas. Com que fim?

Criavam assim um corpo militar de eleição, no qual residia toda a força e potência humana do grão-turco. Era com eles que fazia a guerra a todo o mundo..., e conquistava tantos reinos e províncias como tinha tomado aos cristãos, por nossos pecados, rematava eu tomando calor no que dizia, e pela ambição e cobiça de alguns príncipes católicos, se este nome lhes cabia, que procurando com injustas guerras o alheio perdiam o próprio...

Aqueles eram os guerreiros a que se chamava janízaros. Mas não era só nas guerras que o grão-turco deles se servia. Usava-os também no governo da sua corte e de todos os seus reinos e províncias. Segundo o esforço, a prudência, a valentia e virtude que cada um demonstrava ia-lhes dando os ofícios e honras, dignidades e prémios que lhe parecia merecerem: a uns fazia baxás, que eram uma espécie de vizo-reis de reinos e províncias, a outros sanjacos, que eram governadores das cidades e seus termos, a outros berebés, chauses, cádis, que eram como justiças-mores das terras onde residiam...» In Fernando Campos, A Esmeralda Partida, 1995, Difel, Lisboa, 2008, ISBN 978-972-290-330-1.

Cortesia de Difel/JDACT

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