terça-feira, 29 de dezembro de 2020

A Igreja de S Francisco e o Paço Real de Évora. Francisco Bilou. «… abóbadas das cabeceiras das igrejas de São Francisco de Évora e de Nossa Senhora da Conceição de Beja (1459-1473)…»

Cortesia de wikipedia e jdact

A obra e os protagonistas 500 anos depois

«Já muito se escreveu sobre a obra tardo-gótica de São Francisco de Évora, seja no enquadramento da reforma arquitectónica do corpo do mosteiro, seja no detalhe do seu programa decorativo. Sem dúvida que a qualidade da obra, no seu conjunto, bem como as várias peças documentais que a acompanham, têm favorecido a recorrência do tema, muito enriquecido ao longo do tempo pelo contributo de reputados historiadores nacionais. Pese embora esta evidência, o certo é que algumas dúvidas, imprecisões e omissões têm acompanhado a historiografia do monumento, quer ao nível da análise dos seus elementos arquitectónicos e artísticos e correspondentes enquadramentos temporais, quer da interpretação documental que sustenta os factos e as figuras que lhe deram origem. Foi, precisamente, para responder a esta constatação que nos atrevemos a insistir na análise detalhada da empreitada tardo-gótica, sobretudo a manuelina, tentando reconstituir-lhe um ordenamento factual e cronológico plausível.

Com efeito, relendo o que de substantivo se escreveu até ao momento sobre o assunto, não é óbvia nem consensual a interpretação sobre as diversas intervenções no edifício entre o final do século XV e o início do século seguinte. Desde logo as que andam atribuídas dubitativamente aos investimentos beneméritos de Afonso V e de seu filho, João II, pois se do primeiro dizem as crónicas ter restaurado a arruinada igreja gótica com sua mão poderosa, ao segundo se deve, sem dúvida, se não a traça adoptada por Manuel I, pelo menos uma campanha intermédia de obras, como testemunha a divisa do Príncipe Perfeito na fachada principal da igreja, a par da divisa do Venturoso. O mesmo se pode dizer da interpretação cronológica do ciclo manuelino que, apesar de melhor documentado, ainda assim apresenta zonas de penumbra, quase sempre contornadas com indisfarçável silêncio por muitos dos que se ocuparam do tema. Estão neste caso as datas de arranque e de conclusão do corpo da igreja, alguns passos intermédios da empreitada e, sobretudo, a interpretação de um documento com a duvidosa data de 500, a qual tem servido, invariavelmente, para atrapalhar as propostas de datação da obra.

 

A obra inicial nos reinados de Afonso V e João II

Um dos temas onde as dúvidas abundam é, desde logo, o do momento inicial da reforma tardo-gótica da igreja. Se as memórias transmitidas pelos cronistas são omissas ou inconclusivas, já José Custódio Vieira Silva, no mais completo e assertivo estudo feito ao monumento, deu conta de um primeiro investimento estrutural iniciado nos últimos anos da década de setenta do século XV, o qual, prolongando-se pelo reinado de João II, acabou por ficar circunscrito à reconstrução da capela-mor e dos braços do transepto. Em abono desta análise, refira-se a pertinente comparação feita por este historiador às abóbadas das cabeceiras das igrejas de São Francisco de Évora e de Nossa Senhora da Conceição de Beja (1459-1473) com o propósito de as relacionar estilística e cronologicamente. Só faltou à solidez da sua argumentação o necessário suporte documental. Vejamo-lo agora: na chancelaria de Afonso V encontra-se o registo de uma decisão régia pela qual Afonso Anes Guimarães fica obrigado ao pagamento de mjl reais brancos para as obras e coro de sam francisquo da nossa cidade d’evora. Este documento, datado de Agosto de 1466 e direccionado a uma empreitada específica num edifício religioso, parece comprovar que as primeiras obras em São Francisco já decorriam por essa época, tendo como foco provável a zona da capela-mor, o que faz sentido pela lógica sequencial da construção e pela referência ao coro da igreja, estrutura de aparato litúrgico, ainda hoje, comum àquele espaço. Em reforço desta ideia, também se sabe documentalmente que estando o rei Afonso V em Évora, em 1470, fez saber aos juízes, vereadores e procurador da cidade que havia mandado Soeiro Mendes, cavaleiro de sua casa e alcaide-mor de Arguim, transferir a mancebia da proximidade do mosteiro de São Francisco para o monturo dos oleiros num prazo de cinco meses, dando-lhe para isso uma verba de dez mil reaes dos dinheiros das obras desta cidade e que nom cumprindo elle assy no dito tempo o avemos por apenado em dez mil reaes pera as obras do moesteiro de sam francisco daqui. Ou seja, em 1470 as obras continuavam e o rei impunha medidas de requalificação e dignificação da área envolvente ao mosteiro (e ao paço régio), libertando-o da indesejada vizinhança de casas de prostituição que aí se encontravam instaladas pelo menos desde 1456. A urgência na resolução do problema e a garantia financeira acordada com Soeiro Mendes são sintomas do envolvimento pessoal do monarca no projecto da reforma da casa franciscana de Évora. Acresce a estas duas evidências documentais um outro dado pouco ou nada valorizado pela historiografia, a presença da cruz flordelisada numa das chaves da abóbada da cabeceira da igreja, elemento iconográfico associado à dinastia de Avis mas caído em desuso com João II, após 1485». In Francisco Bilou, A Igreja de S Francisco e o Paço Real de Évora, Fernando Mão de Ferro, Edições Colibri, 2014.

Cortesia EColibri/JDACT

JDACT, Francisco Bilou, Religião, Évora, Cultura e Conhecimento,