sábado, 12 de dezembro de 2020

O Santuário de NSA de Aires. 1743 1792. Raquel Alexandra AR Seixas. «Havia naquelle destrito huma herdade de hum Lavrador rico, o qual tinha hum curral, aonde recolhia os seus boys, no mesmo sitio, em que hoje se vê a Igreja»

Cortesia de wikipedia e jdact

Arquitectura e Devoção

«A verdade de um curso não está no que aí se aprende mas no que disso sobeja: o halo que isso transcende e onde podemos achar-nos homens». In Vergílio Ferreira, Aparição

«A presente dissertação é dedicada ao estudo do Santuário de Nossa Senhora de Aires, em Viana do Alentejo, no distrito de Évora. As motivações religiosas, intrínsecas à piedade popular, estimularam a instituição do culto dedicado a Maria na segunda metade do século XVI. A crescente afluência de peregrinos justificou a substituição da primitiva ermida e a construção do novo Santuário, 1743-1792, cujo traçado foi realizado pelo irmão João Baptista, da Congregação do Oratório de São Filipe de Néri de Estremoz. Procura-se compreender as intenções subjacentes à obra, enquadrando-a no contexto histórico e artístico do seu tempo. A formação mística e filosófica do projectista será também tida em consideração na análise arquitectónica, mormente o templo centralizado da capela-mor e o baldaquino de talha dourada». In Resumo

A construção da lenda de Nossa Senhora de Aires

«A fundação de um templo dedicado à Virgem é quase sempre, senão sempre, precedida pela narrativa de um acontecimento mítico-imaginário, concebida a partir de um de dois modelos: a aparição ou o achamento fortuito de uma imagem escultórica. É esta ocorrência que dita o princípio da lenda, conferindo à imagem e ao lugar o estatuto sacro. E promove a criação de um conjunto de histórias tendentes à legitimação do poder milagreiro da Virgem e à divulgação eficaz do seu culto. No caso específico de Nossa Senhora de Aires, a avaliar pelos dados recolhidos, cremos que o culto antecedeu o registo e estruturação da lenda, obrada somente na primeira metade do século XVIII. Os principais construtores da memória histórico-descritiva do início deste culto transtagano foram fr. Agostinho de Santa Maria (1718) e as religiosas do Convento do Bom Jesus de Viana do Alentejo (1744).

Não obstante a composição da lenda datar do século XVIII, a primeira alusão à manifestação sagrada da Virgem de Aires remonta a 1690 e foi perpetuada na inscrição da lápide, colocada no frontispício da porta principal da actual igreja, composta, segundo fr. Francisco Oliveira, pelo jesuíta António Franco: expulsos os mouros destas terras, quando um lavrador arava o seu campo encontrou a imagem que se vê no antigo altar. Oh feliz terra, mais fecunda do que nenhuma outra! Um só rego, te deu mais do que ceara ou colheita alguma dará.

A tradição do achamento tem a particularidade, no discurso peninsular, de se associar frequentemente a um eremita, que, fugindo dos mouros, se viu obrigado a esconder a imagem sagrada num determinado local, para vir a ser descoberta após a Reconquista. Versão sistematicamente relacionada com o temível Almançor e a incursão de 982, que obrigou à retirada cristã: talvez esconderão estes Mongez a peregrina Imagem, no anno de novecentos, e outenta e douz, em que El Rey de Cordova Almansor destruhio o dito convento de Monje de Arem.

Apesar de este episódio estar firmado na tradição oral, como comprova a inscrição de 1690, fr. Agostinho de Santa Maria, na obra incontornável que é o Santuario Mariano, introduz um conjunto de novos elementos sobre o culto da Senhora de Aires, doravante integrados no imaginário devoto dos crentes. O autor foi, para além do principal lendário de Nossa Senhora de Aires, o introdutor do relato do milagre da aparição ao lavrador Martim Vaqueiro:

Havia naquelle destrito huma herdade de hum Lavrador rico, o qual tinha hum curral, aonde recolhia os seus boys, no mesmo sitio, em que hoje se vê a Igreja. Ficava a casa do Lavrador distante como cousa de cem passos, & tinha esta herdade o nome de Vaqueyros. Reparàrão em algumas noytes os criados do Lavrador, em que deyxando fechada a porta do curral, vião os boys de noyte pastando na herdade, & pela manhã os achavão recolhidos, & a porta do curral fechada, sem poderem saber quem fosse, o que lhes fazia esta que tinhão por travessura. Fizerão queyxa ao seu amo, que se resolveo a ir dormir huma noyte junto à porta do curral, para saber quem obrava estas cousas. Nesta noyte lhe appareceo Nossa Senhora em sonhos, & lhe disse, que ella era a que abria a porta, & soltava os boys, para irem a pastar sem fazerem damno às searas: que lhe fizesse naquele sitio huma Casa, porque era vontade de Deos, que nella fosse louvada, & seu Santissimo Filho, & que ela o ajudaria.

À compilação de Agostinho de Santa Maria seguiu-se uma memória descritiva da Historia da Vila de Viana do Alentejo, produzida pelas religiosas do Mosteiro do Bom Jesus da mesma vila, em 1744. Neste manuscrito prevalece a versão do achamento em detrimento da aparição:

Aludindo á ditoza invenção da soberana imagem da Senhora, que o ceo es a Martim Vaqueyro, de antiga, e nobre família desta villa, e que foi o fundador desta caza, e primeyra igreja; como consta da inscripsão que esta na sua sepultura, na capella mayor da mesma; o qual andando lavrando exerçiçio sempre util e antão honrrozo, e que facilitava a singeleza daquelles tempoz […] abrindo o arado aquelle ditozo campo, descobrio o requissimo thezouro, que ali tinha escondido a piedade, e devoção dos monjez de Arem.

Esta nota espelha a força que a tradição oral exercia junto das populações rurais, responsáveis pela conservação da primeira tradição sobre a origem do culto da Senhora de Aires, divulgada e difundida de geração em geração e imortalizada desde 1690 na inscrição da autoria de António Franco. Neste campo são elucidativas as reflexões de Peter Burke, quando de ende que en las comunidades donde una mayoría de las famílias permaneciam de generacion en generacion, vivendo en las mismas casas com sus padres y abuelos, y cultivando los mismos terrenos, es razonable que admitamos um elevado grado de continuidad cultural. Entre estos grupos las tradiciones orales eran muy estables». In Raquel Alexandra AR Seixas, O Santuário de NSA de Aires, Arquitectura e Devoção, 1743 1792, Dissertação de Mestrado em História da Arte Moderna, FCSH, Universidade Nova de Lisboa, 2013.

Cortesia de FCSH/UNLisboa/JDACT

JDACT, Raquel Alexandra AR Seixas, Monumentos, Religião, Caso de Estudo, História, Alentejo, Cultura e Conhecimento,