terça-feira, 29 de dezembro de 2020

O Fiel Jardineiro. John Le Carré. «O quê, caro amigo?! Repita lá isso. Assassinada. Método desconhecido ou a polícia não quer dizê-lo. O condutor do jipe onde ela ia ficou sem cabeça»

jdact e cortesia de wikipedia

«(…) Continuava a guiar-se pelas suas notas ou pelo menos fingia. Tinha ainda a cara entre as mãos e parecia decidido a assim permanecer, como se depreendia da rigidez obstinada dos ombros. Diga lá outra vez, ordenou Woodrow, após uma pausa. A Tessa estava acompanhada pelo Arnold Blulim. Instalaram-se juntos na Pousada Oasis, passaram lá a noite de sexta-feira e partiram na manhã seguinte, às cinco e meia, no jipe do Noah, repetiu Mildren pacientemente. O corpo de Blulim não estava no todo-o-terreno e não há nenhum vestígio dele. Pelo menos até agora. A polícia de Lodwar e a brigada móvel estão no terreno mas o comando da Polícia em Nairóbi quer saber se pagamos ou não um helicóptero. Onde estão os corpos, neste momento?, perguntou Woodrow como bom filho de militar, seco e prático. Não se sabe. A Polícia queria que o Oasis ficasse com eles mas o Woffigang recusou. Disse que o pessoal sairia imediatamente porta fora e os clientes também. Houve uma hesitação. Ela registou-se na Pousada sob o nome de Tessa Abbott. Abbott?

É o seu nome de solteira. Tessa Abbott, com uma Caixa Postal em Nairobi. É a nossa. Como não tínhamos nenhum Abbott, procurei-o no nosso computador e apareceu Quayle, Tessa, nome de solteira Abbott. Acho que é o nome que ela usa no seu trabalho de ajuda humanitária. Mildren estudava a última página das suas notas. Tentei alertar o Alto Comissario, mas ele anda a visitar os ministérios e estamos em hora de ponta, disse ele. Com isto queria dizer: isto é o Nairóbi moderno do Presidente Moi, em que numa chamada local pode passar-se meia hora a ouvir: desculpe, todas as linhas estão ocupadas, volte a ligar por favor, repetido vezes sem fim por uma simpática voz feminina de meia-idade. Woodrow já tinha chegado à porta. E não contou a ninguém? Nem um pio. E à polícia contou? Eles dizem que não. Mas não põem as mãos no fogo pelo pessoal de Lodwar. Nem por eles próprios, creio eu.

E quanto a si, Justin também não sabe de nada? Exacto. Onde está ele? Calculo que no seu gabinete. Não o deixe sair de lá. Ele hoje chegou cedo. É o costume, quando a Tessa viaja pelo mato. Acha que cancele a reunião? Espere. Consciente agora, se é que alguma vez duvidara, de que estava a braços com um mega-escândalo, além de uma tragédia, Woodrow esgueirou-se por umas escadas das traseiras marcadas Só para Pessoal Autorizado e subiu uma passagem lúgubre que levava até uma porta de aço com uma campainha e um olho-de-boi. Uma câmara de televisão seguiu-o enquanto ele tocava a campainha. A porta foi aberta por uma ruiva magra que usava jeans e uma blusa solta às flores. Sheila, o número dois deles, que fala Swahili, pensou ele automaticamente. O Tim está?, perguntou. Sheila premiu um besouro e falou para uma caixa. É o Sandy e está com pressa.

Só um minuto, gritou uma voz de homem. Esperaram. A costa está completamente livre, agora, disse a mesma voz bem disposta enquanto se abria outra porta. Sheila recuou e Woodrow seguiu-a para dentro da sala. Tim Donohue, Chefe do MI 5 local, um metro e noventa, estava de pé diante da sua secretária. Devia ter estado a arrumá-la, porque não havia um único papel à vista. Donoluie tinha ainda mais mau parecer do que o costume. Gloria, a mulher de Woodrow, dizia sempre que ele devia estar à morte. Faces encovadas e sem cor, bolsas de pele enrugada sob os olhos amarelados e descaídos. O bigode desgrenhado e puxado para baixo numa expressão cómica de desespero. Olá, Sandy. Que é que podemos fazer por si?, gritou ele, espreitando Woodrow por cima dos bifocais com o seu sorriso de caveira. Este é perspicaz demais, lembrou-se Woodrow. Faz um voo planado sobre o nosso território e intercepta os sinais ainda antes de serem executados. Tessa Quayle parece ter sido assassinada algures perto do Lago Turkana, disse ele, com um desejo vingativo de chocar. Há lá um sítio chamado Pousada Oasis. Preciso de falar pela rádio com o proprietário. São treinados para isto, pensou. Regra número um: nunca demonstrar os seus sentimentos, se eles existirem. A cara sardenta de Sheila estava imóvel, pensativa. Tim Donohue mantinha o seu sorriso parvo, de qualquer modo aquele sorriso nunca tivera nenhum significado.

O quê, caro amigo?! Repita lá isso. Assassinada. Método desconhecido ou a polícia não quer dizê-lo. O condutor do jipe onde ela ia ficou sem cabeça. A história é essa. Morta e roubada? Assassinada. Só. Perto do Lago Turkana? Sim. Que raio tinha ido ela lá fazer? Não faço ideia. Ao que dizem, ia visitar as escavações Leakey. O Justin já sabe? Ainda não. Estará envolvido alguém nosso conhecido? É uma das coisas que ando a investigar. Donohue conduziu-o a uma cabine à prova de som que Woodrow nunca vira antes. Havia telefones de cores variadas com cavidades para introduzir fichas de código. Uma máquina de fax pousada sobre uma coisa que parecia um barril de petróleo. Um aparelho de rádio formado por caixas de metal verde. Um livro de endereços escrito à mão pousado em cima. É então assim que os nossos espiões cochicham uns com os outros dentro das nossas embaixadas, pensou ele. Nas mais altas esferas ou no submundo do crime? Nunca o soubera. Donohue sentou-se em frente do rádio, procurou na lista de endereços, depois manuseou os controles com os dedos brancos e tremelicantes enquanto entoava ZN13 85, ZN13 85 chamando TKA 6N, como o herói num filme de guerra. TKA 6O, está-me a ouvir, por favor? Escuto. Oasis, está-me a ouvir, Oasis? Uma explosão de electricidade estática, seguida por uma voz autoritária: Aqui Oasis. Ouço perfeitamente. Quem é você? Escuto, com um sotaque germânico de baixa extracção. Alô Oasis, aqui a Alta Comissão Britânica em Nairóbi, vou-lhe passar Sandy Woodrow. Escuto. Woodrow apoiou as mãos na secretária de Donohue, para se aproximar do microfone: aqui Woodrow, Chefe de Chancelaria. Estou a falar com Wolfgang? Escuto. Chancelaria, como a do Hitler? Secção política. Escuto. Okay senhor Chanceler, eu sou o Wolfgang. Que deseja saber? Escuto. Quero que me dê, por favor, pelas suas próprias palavras a descrição da mulher que passou a noite no seu hotel sob o nome de miss Tessa Abbott. É assim, não é? Foi o nome que ela escreveu? Escuto. Claro: Tessa. Como era ela, fisicamente? Escuto. Cabelo escuro, sem maquilhagem, alta, vinte e muitos e não era inglesa. Cá para mim, não era. Alemã do Sul, austríaca ou italiana. Eu sou hoteleiro, reparo nas pessoas. E ela era linda! Também sou homem. Aquele modo de andar, sexy como um animal... E o que ela trazia vestido... dava ideia que se podia tirar aquilo tudo só com um sopro, Parece-lhe a sua Abbott ou outra pessoa qualquer? Escuto». In John Le Carré, O Fiel Jardineiro, 2001, Editora Dom Quixote, 2001, ISBN 978-972-203-048-9.

Cortesia de EDQuixote/JDACT

JDACT, John Le Carré, Literatura,