O pedido da Rainha
«(…)
Sua Alteza a rainha Isabel teve a infelicidade de só gerar um varão, dom João,
que Deus tenha em sua glória. A minha rainha quase endoideceu ao ver o filho morto,
mas esperançou-se na gravidez de Madama Margarida; infelizmente a criança que
ela pariu não viveu nem uma hora; depois, a minha rainha ainda se consolou em
ver sua herança passar para dona Isabel, a filha mais velha, mas também ela
morreu naquele dia aziago, em Saragoça, e depois o filho, o príncipe Miguel. O
principezinho sempre foi fraquito. Vi-o o ano passado, pouco antes de falecer e
não inspirava confiança. Mas livrava-nos dos Flamengos e do imperador. Que
agora se aprestam para abocanhar Castela e Aragão. Sabes bem, Vasco, que a
maior aflição está do nosso lado de Castela. A rainha Isabel não pode ter mais
herdeiros legítimos e está doente. Sempre com achaques, perdeu boa parte da energia
com que domou os grandes de Castela e que lhe permitiu aturar e controlar o
aragonês, seu marido. Há quem diga que el-rei Fernando já sonha com a viuvez e
com seu próximo casamento; os Aragoneses ainda esperam que o rei lhes dê um
filho varão que os livre do arquiduque Filipe.
Joana,
a terceira filha dos Reis Católicos, casara em 1496 com Filipe, duque da
Borgonha, filho do imperador Maximiliano e de Maria da Borgonha. O casal já
tivera dois filhos, Leonor e Carlos, nascidos em 1498 e 1500, respectivamente.
Assim, a herança de Castela cabia inevitavelmente à Casa da Borgonha, senhora
dos Países Baixos, herdeira dos Habsburgos e forte candidata a nova eleição imperial.
Em Castela, esta solução trazia muita gente inquieta. Mas vós, Castelhanos,
tendes de aceitar a realeza da infanta Joana, embora eu esteja certo que
ficaríeis melhor servidos com sua irmã dona Maria e el-rei meu senhor. Pois,
mas as leis sucessórias não podem ser mudadas. Quais são vossos receios? A
própria infanta Joana. Por meus informadores, não conheço problemas graves. O
marido está muito contente com o seu desempenho. Já lhe deu sucessão. E parece
que lhe agrada muitíssimo na cama.
Então,
que vos preocupa? Consta que a infanta Joana é louca… Há uns rumores de que é
muito apaixonada e aparatosa, mas é mesmo desmiolada? O semblante de dom García
carregou-se pela preocupação, e a língua de Vasco estalou de novo. O Pacheco
prosseguiu ao contrário das irmãs, a pequena Joana sempre foi pouco comedida e
nunca seguia a etiqueta por muito tempo. Diz-se que se ajuntou com Filipe assim
que o viu. E é demasiado apaixonada por seu marido. Não sabe sofrer a condição
de fêmea e cria escândalo sempre que desconfia que Filipe se ajuntou com outra.
Faz bem a infanta. Faria se não fosse uma princesa. Ora, dom García, tem
sentimentos, como as outras mulheres. E se está apaixonada pelo arquiduque,
melhor se compreende suas atitudes. Ela devia pôr os olhos em sua mãe que pariu
a primeira filha ao mesmo tempo que nascia o arcebispo Afonso, primeiro
bastardo d'el-rei Fernando, e que manteve firme o casamento e o sossego dos reinos.
E então qual é o vosso receio?
Que sendo a infanta Joana louca, seus pais não a possam preparar para defender os interesses de Castela face a Filipe. A falta de tino não é muito grave enquanto for apenas a consorte da Borgonha, mas se suceder no trono de Castela será ela a fonte do poder. Então o problema é saber quem domina Joana, se o marido com seus Flamengos e Borguinhões, se vocês os Castelhanos. Dá-me mais vinho, Vasquito. Enquanto limpava as barbas, García prosseguiu: sei que partes em breve para os Países Baixos. Vasco voltou a escoicear, irritado. O Isasaga sabe de mais. García recuperou seu sorriso cínico. Ora, meu amigo, para que serve um embaixador se não obtiver informações. Pois, mas o vosso embaixador na minha corte é demasiado inquiridor. El-rei há-de tratar do assunto. E o que me quereis? Não sou eu. É a própria rainha. E, não quer que ninguém saiba de seu pedido. Nem o teu rei, nem el-rei Fernando, seu marido. Estais a pedir-me o impossível. Vais ver que não. Ela nunca se esqueceu do teu desempenho na defesa do duque de Beja, em Roma, e sabe de nossa amizade». In João Paulo Oliveira Costa, O Cavaleiro de Olivença, Círculo de Leitores, Temas e Debates, 2012, ISBN 978-989-644-184-5.
Cortesia de CL/TDebates/JDACT
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