Antelóquio
«(…)
No que ao primeiro problema diz respeito, o mito de Portugal, compreendido na
sua substância de encarnação de ideais colectivos, tem conteúdo histórico e
existencial, por nele se exprimirem, por forma contínua e variada, os
sentimentos, as paixões e as aspirações de um povo, a par das suas narráveis
acção, visão, compreensão e capacidade de transformação do mundo. Como fenómeno
cultural, o mito conserva, ou melhor, coincide com os ideais da nacionalidade,
do ser português na origem para a sua vocação tardia: nasce com a consciência
do povo português, corporiza-lhe o sentimento terrantês, ou matricial, e a
emoção colectiva da pertença pátria, insinua a união da gesta com a esperança e
a promessa, mas também a contradição da vida gloriosa com os paramos árduos da
decadência. O mito de Portugal, tal como aqui o interpreto, constitui um
sistema de representações vitais, uma organização de valores mentais,
afectivos, gnosiológicos, éticos e espirituais que se foi formando sob o efeito
das injunções da história e ao longo das circunstâncias dos Portugueses na
história, que se confunde com a ideia da nacionalidade e sua permanência no
tempo. Daí a resposta ao segundo problema. O núcleo vivo do mito de Portugal
está na permanente abertura de si à hermenêutica das gerações, e à sua epifania
deve regressar continuamente o português, a braços com a sua própria imagem e
nas crises de identidade nacional.
História concisa do mito de Portugal
Os
mitos históricos são uma forma de consciência fantasmagórica com que um povo
define a sua posição e a sua vontade na história do mundo. António José Saraiva
Para
definir o mito de Portugal basta tão-só a História de Portugal, pelo que ele é
extensivo no espaço e intensivo no tempo. Extensivo, por não coincidir com a
geografia do cantão peninsular, seja embora este a terra da formação do mito e
da sua gestação, antes tendo por fronteiras os limites físicos do próprio
mundo. Intensivo, porque ao longo das aportações históricas que foi recebendo
do imaginário português, o tempo cronológico, que marca o ciclo das culturas e
das civilizações, foi sendo progressivamente substituído pelo tempo do
espírito, pelo qual se concebem os possíveis e o futuro.
O mito de Portugal é um mito de
origem e destino colectivos. É, sobretudo, o mito de Portugal como império,
cujo estrato cultural enraíza na noite dos tempos, se formou nos transes mais
complexos da história nacional e evoluiu por alargamento sucessivo da sua
primeira matriz, para cujo sincretismo de conteúdos tanto contribuíram a
política de Portugal no concerto das nações e a efabulação das ideologias
políticas, principais responsáveis pelo privilégio sacral do próprio mito
enquanto fautor da consciência nacional e fonte legitimadora do lugar autêntico
dos Portugueses no mundo. Se, com António José Saraiva, concordo em que os
mitos históricos contêm paradigmas da posição e vontade de um povo na história
do mundo, com ele discordo em que sejam formas de consciência fantasmagórica,
um modo hipercrítico de dizer que reduz a simples flatus vocis as
significações do mito e destrói a ontologia de sentido da sua construção
colectiva.
A
constelação de valores que há nos mitos históricos, que coincide com a verdade
que exprimem ou querem exprimir, adapta-se e combina-se no recontro directo com
as circunstâncias da própria história, porque nos mitos fala aquela parte que
sempre neles se conserva, a identidade cultural de uma comunidade. Se morrem e
incompreensivelmente ressuscitam, é por mor daquela identidade, que não é
intemporal, nem sequer transversal ao tempo, mas agente no tempo, memória que
conserva o passado e cinge o futuro. A eles regressam as gerações, ainda
quando, e sobretudo, a nudez do tempo e a crueldade da história desmintam os
seus anseios, os seus sonhos e as suas glórias. O que aqui governa no mito são
os arquétipos do inconsciente colectivo e estes só desaparecem quando a
comunidade que neles se revê fatalmente morre, e funestamente a acompanha o
mito. A reintegração do mito de Portugal nas diferentes fases da história do
País responde à singularidade das vivências dos Portugueses, obedece à matriz
da sua identidade, propõe-se à aceitação e ao antagonismo, reluz ou obscurece-se
no curso das mudanças profundas da realidade nacional e nos múltiplos aspectos
das opções e caminhos desta. Morrem as gerações, morrem os impérios. Só o mito
não morre». In Manuel C. Pimentel, O Mito de Portugal nas suas Raízes
Culturais, Wikipédia, om.acm.gov.pt/documentos.
Cortesia de wikipedia/JDACT
JDACT, Manuel C. Pimentel, Cultura e Conhecimento, Filosofia,