domingo, 6 de dezembro de 2020

O Vermelho e o Negro. Stendhal. «Que diferença!, tornou vivamente o carcereiro; todos sabem que o senhor cura tem 800 libras de renda, propriedades imobiliárias...»



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«(…) Por volta das três da tarde, esses senhores foram terminar a inspecção do asilo de mendicidade e voltaram em seguida à prisão. Lá, encontraram à porta o carcereiro, espécie de gigante de quase dois metros de altura e de pernas arqueadas: a sua cara ignóbil tornara-se medonha por efeito do terror. Ah!, senhor, disse ele ao cura assim que o avistou, esse senhor que o acompanha não é o sr. Appert? Que importa?, disse o cura. É que desde ontem tenho ordens precisas, que o sr. governador enviou por um gendarme que teve de galopar a noite toda, de não admitir a entrada do sr. Appert na prisão. Declaro-lhe, senhor Noiroud, disse o cura, que esse viajante que está comigo é o sr. Appert. Acaso reconhece que tenho o direito de entrar na prisão a qualquer hora do dia ou da noite, fazendo-me acompanhar por quem eu quero? Sim, sr. cura, disse o carcereiro em voz baixa e baixando a cabeça como um buldogue que obedece a contragosto por temor do bastão. Só que tenho mulher e filhos, sr. cura, se eu for denunciado me destituirão, para viver dependo apenas do meu cargo. Eu também ficaria bastante aborrecido de perder o meu, retrucou o bom cura, com uma voz cada vez mais irritada. Que diferença!, tornou vivamente o carcereiro; todos sabem que o senhor cura tem 800 libras de renda, propriedades imobiliárias... Tais são os factos que, comentados, exagerados de vinte formas diferentes, agitavam havia dois dias todas as paixões odiosas da pequena cidade de Verrières. Neste momento, eles serviam de texto à pequena discussão que o sr. de Rênal mantinha com sua mulher. De manhã, acompanhado do sr. Valenod, director do asilo de mendicidade, ele fora à casa do cura para demonstrar-lhe o mais vivo descontentamento. O cura Chélan não era protegido de ninguém e percebeu o alcance das palavras que ouviu.

Pois bem, senhores! Serei o terceiro cura, de oitenta anos de idade, que destituirão nesta região. Há cinquenta anos estou aqui; batpizei quase todos os habitantes da cidade, que era apenas um burgo quando cheguei. Diariamente faço o casamento de jovens cujos avós foram outrora casados por mim. Verrières é a minha família; mas, ao ver o forasteiro, pensei comigo: esse homem veio de Paris, pode ser na realidade um liberal, e já os temos em demasia; mas que mal pode fazer a nossos pobres e a nossos prisioneiros? Diante das reprovações cada vez mais vivas do sr. de Rênal, e sobretudo do sr. Valenod, o director do asilo de mendicidade, o velho cura exclamou com uma voz trémula: pois bem, senhores!, mandem destituir-me. Mesmo assim continuarei morando aqui. Todos sabem que há quarenta e oito anos herdei um campo que me rende 800 libras. Viverei com esse rendimento. Eu, senhores, não faço economias à custa do meu cargo e, talvez por isso, não fico tão assustado quando me falam de tirá-lo. O sr. de Rênal vivia muito bem com a mulher; mas, não sabendo o que responder a esta ideia que ela lhe repetia timidamente: que mal esse senhor de Paris pode fazer aos prisioneiros?, estava a ponto de zangar-se, quando ela deu um grito. O segundo de seus filhos subira no parapeito do muro do terraço e ali corria, embora esse muro se elevasse a mais de 6 metros sobre o vinhedo que está do outro lado. O temor de assustar o filho e fazê-lo cair impedia a sra. de Rênal de dirigir-lhe a palavra. Por fim o garoto, que ria da sua proeza, olhando para a mãe, viu a sua palidez, saltou para o passeio e correu até ela. Foi severamente repreendido. Esse pequeno acontecimento mudou o rumo da conversa». In Stendhal, O Vermelho e o Negro, 1830, Edição Relógio D'Água, 2010, ISBN 978-989-641-115-2.

Cortesia de ERelógioD’Água/JDACT

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