quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

O Santuário de NSA de Aires. 1743 1792. Raquel Alexandra AR Seixas. «A ancestralidade do sítio não foi decerto alheia ao processo de cristianização e motivou, sobremaneira, a reinterpretação sacro-cristã do espaço, implantado num local de fácil acesso…»

Cortesia de wikipedia e jdact

A sacralização do espaço e do templo

«(…) Muitos são os espaços de culto que registam sinais de ocupação antiquíssima, continuamente reocupados e reinterpretados. A arqueologia tem demonstrado como inúmeros povoados pré-históricos foram romanizados e inúmeros povoados romanos foram cristianizados, procedendo-se, nestes casos, à contínua sacralização de espaços através da promoção de uma continuidade que concede a estes lugares um estatuto único e um sentido de permanência, e aos povos um sinal de pertença e de unicidade. Fenómeno verificado no sítio onde se ergue o Santuário de Nossa Senhora de Aires, desde há muito identificado como um antigo povoado romano. Os trabalhos de construção do novo templo trouxeram à luz do dia alguns artefactos arqueológicos da época romana, descritos nas fontes coevas. Com as obras para a nova capela-mor, começada a 6 de Julho de 1743, foram mesmo descobertos vestígios de uma necrópole romana: três lápides sepulcrais, publicadas em 1744 por fr. Francisco Oliveira na Gazeta de Lisboa. O frade dominicano, cuja ordem possuía uma casa em Alcáçovas, em visita ao local no ano de 1745 encontrou outra ara funerária publicada, por iniciativa própria, no I tomo do Diccionario Geografico:

D.M.S. / Maria Euprepia- / a qua ifate / Concesseru- / nt vivere a-/ nis XXXV ben-/ e merenti mo-/ destus conjuci / sua posuit.

Esta e mais uma inscrição fúnebre foram incorporadas na arquitectura da cerca, precisamente nas extremidades da frente poente, aplicadas em plintos coroados por pináculos em pinha. Túlio Espanca indica que estas lápides terão sido aí colocadas pouco tempo antes de 1758, em desacordo com a cronologia dos apontamentos do presbítero Francisco Oliveira, que diz taxativamente:

para nam perder-se persoadi o capitam João de Melo a xpore-se (sic) em parte pública nas suas casas da galaria que reformou em 1759 as quais ficam perto da mesma igreja.

Deste modo, pensamos ser plausível a hipótese de estas aras terem integrado a cerca entre 1759 e 1792, ano de término da construção do novo Santuário. A inclusão dos dois vestígios romanos numa construção cristã certifica o respeito pelos antepassados, que anteriormente haveriam ocupado o local. Realidade que traduz a passagem e a permanência dos homens (que) elevou determinados lugares a uma condição numinosa (e luminosa).

No ano de 1901, José Leite Vasconcelos foi convidado a visitar a herdade das Paredes, junto à Senhora de Aires, no qual appareciam a cada passo restos romanos. Ali deparou-se com a presença de ânforas, dolia, tégulas, imbrices, argamassa signina, moedas romanas, escórias de fornos de olaria e canos. Tendo ainda encontrado, como noticia, uma moeda romana do século VI, além de muitas outras que viu na mão de particulares, um capitel e uma coluna de mármore provindos das Paredes. As descobertas promoveram o reconhecimento arqueológico, sob a alçada do então Museu Etnológico, desenvolvido por Félix Pereira em 8 de Junho de 1902. Os trabalhos concluíram que no sítio das Paredes, e por conseguinte na Senhora de Aires, existia uma povoação romana, confirmada pela necrópole (documentada desde o século XVIII), pelos artefactos do quotidiano e pelas inúmeras moedas cunhadas entre os séculos II e VI d.C. Mais recentemente, Jorge Alarcão identificou no sítio da Senhora de Aires e na herdade das Paredes um vicus, isto é, um povoado civil do Império Romano controlado pelo exército.

A ancestralidade do sítio não foi decerto alheia ao processo de cristianização e motivou, sobremaneira, a reinterpretação sacro-cristã do espaço, implantado num local de fácil acesso, contrariamente ao habitual. Decididamente, o registo de ocupação anterior, não-cristã, substituiu a premissa da inacessibilidade e promoveu as leis da aculturação. A contínua deslocação dos populares ao local, comprovada pelas numerosas moedas portuguesas de varias épocas, desde a 1ª dynastia, documenta a importância do espaço e fundamenta o desejo de cristianização. A simbólica da sacralização é extensível à casa terrena da Virgem, o Santuário, local privilegiado do culto. Recorde-se, a este propósito, o milagre da reposição dos bois narrado por Agostinho Santa Maria, pois: sendoh (a Martim Vaqueiro) necessario dinheyro para começar a obra, vendeo para isso alguns bois, que levando os o comprador se não acharão menos na manada. Este prodígio celeste é fortalecido pelo simbolismo atribuído à capela-mor, construída no mesmo lugar, aonde estava a porta do curral». In Raquel Alexandra AR Seixas, O Santuário de NSA de Aires, Arquitectura e Devoção, 1743 1792, Dissertação de Mestrado em História da Arte Moderna, FCSH, Universidade Nova de Lisboa, 2013.

Cortesia de FCSH/UNLisboa/JDACT

JDACT, Raquel Alexandra AR Seixas, Monumentos, Religião, Caso de Estudo, História, Alentejo, Cultura e Conhecimento,