«Três crianças estão estendidas sobre as rochas à beira da água. Uma rapariguinha de cabelo escuro. Dois rapazes, ligeiramente mais velhos. Esta imagem permanece gravada para sempre na minha memória, como uma frágil criatura preservada em âmbar. Eu própria e os meus irmãos. Lembro-me de como a água ondulava à medida que eu corria os meus dedos ao longo da sua superfície brilhante. Não te inclines tanto, Sorcha, disse Padriac. Podes cair. Era um ano mais velho do que eu e servia-se dessa pequena diferença para exercer uma certa autoridade sobre mim. O que era compreensível, suponho. No fim de contas, éramos seis irmãos, cinco dos quais mais velhos do que ele. Ignorei-o, tentando alcançar as misteriosas profundidades. Ela pode cair, não pode, Finbar? Um longo silêncio. Como este se prolongasse, olhámos ambos para Finbar, que estava deitado de costas, estendido sobre a rocha tépida. Não estava a dormir; os seus olhos reflectiam o cinzento-pálido do céu outonal. O seu cabelo estava espalhado sobre a rocha num emaranhado negro selvagem. Havia um buraco na manga da sua jaqueta.
Os cisnes vêm aí, disse Finbar
por fim. Sentou-se lentamente e apoiou o queixo nos joelhos dobrados. Vão
chegar esta noite. Por trás dele, uma brisa fez mover os ramos de carvalhos e
ulmeiros, freixos e amieiros e espalhou em todas as direcções as folhas
douradas, cor de bronze e castanhas. O lago estava rodeado por montes cheios de
árvores, abrigado como num grande cálice. Como é que sabes?, perguntou Padriac.
Como é que podes ter a certeza? Pode ser amanhã ou no dia seguinte. Ou podem ir
para outro lugar qualquer. Tens a mania de que sabes sempre tudo. Não me lembro
de Finbar responder, mas mais tarde, nesse dia, quando a noite se aproximou,
levou-me de novo até à margem do lago. Naquela meia luz, sobre a água, vimos os
cisnes a regressarem a casa. Os últimos raios de sol apanharam um movimento
branco no céu que escurecia. Em seguida já eles estavam suficientemente perto
para podermos ver o seu voo em formação ordenada, descendo através do ar frio à
medida que a luz desaparecia. O barulho das asas, a vibração do ar. O último
deslizar sobre a água e o brilho prateado desta, abrindo-se para os receber. Ao
amararem, o som parecia o meu nome, uma vez e outra: Sorcha, Sorcha. A minha mão
apertou a de Finbar; ficámos ali imóveis até ser escuro e só depois o meu irmão
me levou para casa.
Se se tem a sorte de crescer como
eu, fica-se com muitas coisas boas para recordar. E algumas não tão boas. Uma
Primavera, olhando para as minúsculas rãs verdes que apareciam com os primeiros
calores, os meus irmãos e eu mergulhávamos na corrente, fazendo tanto barulho
que assustávamos qualquer criatura. Três dos meus seis irmãos estavam comigo,
Conor a assobiar uma velha canção; Cormack, o seu gémeo, arrastando-se de
costas e ficando com o pescoço cheio de lodo. Ambos rolando na margem, lutando
e rindo. E Finbar. Finbar estava mais acima, quieto, numa poça provocada pelas
rochas. Não virava pedras à procura de rãs; silenciosamente, encantava-as. Eu
tinha na mão um ramo de flores silvestres, violetas, rainhas-dos-prados e
daquelas a que nós chamamos campainhas. Perto da margem estava uma nova, com
flores em forma de estrela, de um delicado verde-pálido e folhas como penas
cinzentas. Desci e estendi o braço para a apanhar.
Sorcha! Não lhe toques!, estalou
Finbar. Assustada, olhei para cima. Finbar nunca me dava ordens. Se fosse Liam,
que era o mais velho, ou Diarmid, que vinha a seguir, não me espantaria. Finbar
apressou-se na minha direcção, abandonando as rãs. Mas porque é que eu lhe havia
de prestar atenção? Ele pouco mais velho era do que eu e era apenas uma flor. Sorcha,
não... Enquanto os meus pequenos dedos colhiam um daqueles caules de aparência
suave. A dor na minha mão foi como se estivesse a arder uma agonia que me fez contrair
o rosto e gritar enquanto tropeçava ao longo da vereda, as flores caídas no chão,
calcadas sob os pés. Finbar travou-me bruscamente, as mãos nos meus ombros,
parando-me a fuga desordenada.
Morugem, disse ele olhando para a
minha mão, que inchava e enrubescia rapidamente. Por esta altura os meus gritos
tinham atraído os dois gémeos, que se aproximaram a correr. Cormack segurou-me,
visto que era forte, enquanto eu berrava e me debatia com dores. Conor rasgou
um bocado da sua suja camisa. Finbar encontrara um par de aguçados galhos e
começou a retirar delicadamente, um por um, os minúsculos espinhos que a planta
morugem tinha embebido na minha suave carne. Lembro-me da pressão das mãos de
Cormack nos meus braços enquanto eu lutava por ar entre soluços e ainda consigo
ouvir Conor a falar, a falar, numa voz calma, enquanto os longos e hábeis dedos
de Finbar continuavam com a tarefa. ... e o nome dela era Deirdre, Dama da
Floresta, mas nunca ninguém a via, excepto à noite, se se fosse ao longo dos
caminhos sob os vidoeiros, quando se podia vislumbrar a sua silhueta alta
vestida com uma capa azul, o longo cabelo, selvagem e escuro, flutuando sobre
os ombros e a pequena coroa de estrelas...
Quando tudo acabou, ligaram-me a
mão com uma ligadura feita da camisa de Conor, com algumas pétalas de malmequer
esmagadas e pela manhã já estava melhor. Nem uma palavra foi dita aos meus irmãos
mais velhos quando voltaram para casa, de como eu fora tola». In Juliet Marillier, A Filha da
Floresta, Sevenwaters
1, 2000, Editorial Planeta, 2017, ISBN 978-989-657-960-9.
Cortesia de EPlaneta/JDACT
JDACT, Juliet Marillier, Literatura, Fantasia,