«Deus sentira-se de tal modo defraudado por a Sua criação mais auspiciosa, o Homem feito à Sua imagem e a Mulher feita segundo a imagem aperfeiçoada do Homem, para dominarem sobre todos os outros seres do Mundo, ter resultado tão defeituosa e rebelde que, depois de os fazer expulsar do jardim do Éden, apesar da insistência dos anjos, se mostrara inabalável na recusa de uma nova tentativa para criar a Humanidade. Apesar da Sua omnisciência (talvez devido ao cansaço de ter feito aquele imenso Mundo em apenas seis dias), no instante da criação do Homem sentira-se muito orgulhoso e satisfeito com a Sua obra e não lhe achara qualquer defeito ou mácula. Assim, na euforia que se seguiu, não vendo entre todos os animais desse Mundo uma companheira adequada para oferecer à Sua criatura, caíra na tentação de dar vida a um novo ser, feito à imagem do anterior, mas aperfeiçoando o modelo com a introdução de pequenas mas significativas diferenças. Como desejava um material mais raro do que o pó utilizado na primeira tentativa, adormeceu profundamente o Homem, nas margens do rio Tigre que limitava a Oriente o jardim do Éden, e tirou-lhe uma das costelas que substituiu por carne, esculpindo a partir do osso uma nova criatura em forma de Mulher. Ao contemplar a Sua obra, Deus achou-a tão bela que, em vez de lhe soprar a vida pelas narinas como fizera ao Homem, lha insuflou através dos lábios beijando-a e, com surpresa, sentiu pela primeira vez o Seu espírito vibrar de emoção nesse fugaz contacto com a matéria. Deus conduziu a Mulher para junto do Homem que despertara e observou cheio de curiosidade a sua reacção. Para Seu espanto, o Homem, ao ver diante de si aquele novo ser em toda a sua esplêndida nudez, não se ergueu do lugar, nem agradeceu a dádiva ao Criador, limitando-se a exclamar: esta é realmente osso dos meus ossos e carne da minha carne! Chamar-se-á mulher, visto ter sido tirada do homem! Ouvindo estas frases, Deus admitiu pela primeira vez que talvez a sua melhor criação não fosse afinal tão perfeita no espírito como era na carne e pensou se não seria um risco pôr a árvore da ciência do bem e do mal ao seu alcance. Porém como já era tarde, retirou-se para descansar ao sétimo dia e não voltou a pensar no assunto.
E, um dia, as Suas criaturas eleitas atraiçoaram-No e quando
Deus os confrontou com o crime da rebeldia e da desobediência, o Homem culpou a
Mulher e a Mulher culpou a Serpente pela tentação de provar o fruto proibido. E
Deus, ferido no Seu orgulho e no Seu amor, vestiu-os com túnicas de peles e
expulsou-os para sempre do Jardim das Delícias, antes que descobrissem o fruto
da árvore da vida e vivessem eternamente. Apesar do seu arrependimento e das
suas súplicas, Deus lançou-lhes terríveis maldições: tu, Mulher, por teres
desejado ser mais inteligente do que o Homem e igual ao teu Deus, procurarás
com paixão o teu marido, a quem serás sujeita. Aumentarei os sofrimentos da tua
prenhez e parirás teus filhos com dor, suor e lágrimas. Chamar-te-ás Eva pois
serás a mãe de todos os viventes. A Mulher chorou o Paraíso Perdido e a sua
nova condição na terra. Em seguida, Deus amaldiçoou o Homem: tu, Homem, que
provaste o fruto proibido da inteligência, procurarás o alimento, à custa de
penoso trabalho, em todos os dias da tua vida e comerás o pão com o suor do teu
rosto, até que voltes à terra de onde foste tirado: porque tu és pó e em pó te
hás-de tornar! E todo o Homem nascido da tua semente há-de ser tentado e
enganado pela Mulher, por toda a Eternidade, como tu foste pela tua. E Deus
enviou querubins armados de espadas flamejantes expulsá-los do Paraíso, pela
porta do Oriente, para as terras desérticas da futura Babilónia, entre os rios
Tigre e Eufrates que Adão, o primeiro homem, deveria tornar férteis pelo
esforço do seu lavor e castigo. Quando Deus acalmou a Sua ira e pôde pensar com
serenidade nas duas criaturas caídas em desgraça, viu que dispunha apenas do
casal primordial, Adão e Eva, para povoar o mundo e, como não queria voltar com
a palavra atrás, criando novos seres, foi forçado a prolongar as suas vidas
miseráveis assim como a dos seus descendentes, tornando-as férteis durante
séculos para que a Humanidade pudesse crescer e multiplicar-se com algum
sucesso. Mesmo assim o processo era tão lento que os Filhos de Deus,
contrariando os desígnios do Pai, decidiram sair da esfera celeste e contribuir
para o acréscimo da Humanidade, escolhendo entre as mais belas filhas dos
Homens as que bem quiseram para mulheres e da sua união nasceram os gigantes e
os famosos heróis dos tempos remotos, paridos em grande dor pelas filhas dos
Homens, pois a maldição divina jamais fora levantada.
Deus,
tomando conhecimento da desobediência das forças celestes e da desordem cósmica
que isso implicava, arrependeu-se mais uma vez de ter criado o Homem e a Mulher
e, sofrendo amargamente, castigou de novo as Suas criaturas: não quero que o
meu espírito permaneça indefinidamente no homem, pois o homem é carne, por
isso, os seus dias não ultrapassarão os cento e vinte anos. E Deus enviou o
Dilúvio e destruiu as terras da Mesopotâmia e todos os seres vivos, permitindo
que apenas Noé com a sua família, a nona geração de Adão, e um casal de todos
os animais em vias de extinção se salvassem numa arca, abrindo assim o caminho
para uma nova Humanidade, num processo quase idêntico ao anterior. Deus contava
com a efemeridade da vida a que havia condenado os homens e com a sua lentidão
em crescer e se multiplicar, para tão cedo não ser importunado pelos seus erros
e desacatos, nem ter de os vigiar, punir ou premiar pelos seus actos. E então
Deus deixou os homens entregues a si próprios e esqueceu-se deles. Porém,
contrariando os desígnios divinos, as forças celestes interessaram-se de novo
pela Humanidade e, para acelerar o seu crescimento, concederam aos descendentes
de Noé, tal como haviam feito aos de Adão, uma esperança de vida de mais de
novecentos anos nos homens e uma juventude e fertilidade quase eternas nas
mulheres, segundo consta nos registros do livro das gerações nascidas de Adão,
de todos os Patriarcas de antes e depois do Dilúvio, no Livro do Génesis, que
não enunciaremos aqui, por ser demasiado extenso e não servir os propósitos
deste nosso conto». In Deana Barroqueiro, Contos Eróticos do Antigo Testamento, 2003,
Planeta Editora, 2018, ISBN 978-989-777-143-9.
Cortesia de PlanetaE/JDACT
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