quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «Sem lhe dar tempo para pensar, dona Teresa alegou que a irmã fora conduzida para uma armadilha. Lanhoso era um castelo inexpugnável, resistiria meses ao cerco, e as tropas portucalenses…»

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Lanhoso, Março de 1120

«(…) Os seus perceptores compreenderam a preocupação, mas Paio Soares revelou-se intransigente: jamais colocaria as suas tropas em risco nos arrabaldes de Lanhoso! Porém, e por mais veementes que fossem os seus argumentos, não convenceram o jovem príncipe. Enervado, o rico-homem da Maia amuou e declarou que, se não seguiam os seus conselhos, não valia a pena perder tempo. Na verdade, o que ele tinha era um medo fantasmagórico de dona Urraca, e por isso escolheu afastar-se mais uma vez para a sua Maia. Exaltado, saiu pela porta da torre de menagem e gritou: Ramiro, preparai o meu cavalo!

Naquela primeira vez que o vi, Ramiro era um jovem franzino, da mesma idade do que o príncipe. Filho bastardo de Paio Soares, encolhia-se na sua presença, pois era tratado com dureza. Ao chegar perto do cavalo, que o filho não conseguia acalmar, o pai gritou-lhe: sois um tolo, dai cá isso! Montou em dois tempos o seu alazão e olhou com desprezo para o bastardo, que logo correu atrás. Todos tivemos pena dele, tão mal vestido e humilhado em público. Mas logo o príncipe nos relembrou os seus desejos, dizendo, sempre voluntarioso: vamos para Lanhoso! Ao princípio da noite, uma pequena comitiva chegou à povoação, já cercada por dona Urraca e Gelmires, e foi necessária a intervenção de Fernão Peres Trava para que fosse autorizada a nossa entrada no castelo. Já na presença de dona Teresa, que ceava, o Trava revelou a sua profunda desilusão com os portucalenses. Onde estão as nossas tropas?, perguntou, indignado. Os irmãos de Ribadouro explicaram que haviam considerado mais prudente deixá-las em Guimarães, defendendo a cidade, e que Paio Soares temera vis emboscadas em redor de Lanhoso, preferindo regressar à Maia com os seus homens. Deixam a vossa rainha à mercê da irmã?, enfureceu-se o Trava.

Também Bermudo considerou aquela, uma traição indigna, e os irmãos Trava só atenuaram a sua fúria ao saberem que fora o príncipe que forçara a comitiva a vir ajudar a mãe. Ao menos, alguém corajoso!, exclamou Fernão Peres. Para espanto dos presentes, dona Teresa considerou uma tolice o príncipe ter vindo a Lanhoso, pois não só arriscava a própria vida, como o fazia sem tropas, não auxiliando a mãe em nada. Urraca pode, de uma assentada, matar-me a mim e ao meu filho! Mirando Afonso Henriques, em cuja cara se pressentia a desilusão com a reacção maternal, perguntou-lhe: não vos avisei já para não lutardes com mulheres?

Agrestes com os portucalenses, dona Teresa e seu amante logo nos dispensaram, atribuindo-nos uns quartos numa habitação secundária da alcáçova, e provavelmente nenhum de nós teria sabido da surpreendente intriga que veio a urdir-se, não fosse a minha prima Raimunda ter revelado, mais uma vez, as suas habilidades de espia, e escutado uma inesperada e improvável conversa que aconteceu nessa noite.

Começara a chover e só as sentinelas não se haviam recolhido, quando alguém abriu a ponte levadiça a um solitário cavaleiro, deixando-o entrar sem sequer retirar o capuz. Era dona Urraca, a quem sua irmã enviara uma mensagem secreta, alegando que deviam parlamentar. Embora bulhassem constantemente, nos intervalos dessas polémicas as duas irmãs davam-se bem. Sempre que podiam encontravam-se em segredo, longe dos seus conselheiros, e decidiam livremente o que desejavam. Em Lanhoso, repetiram o costume familiar e, para não serem vistas, desceram às masmorras vazias e frias. Iluminada apenas pela chama de dois archotes, Urraca parecia envelhecida por tantas guerras e zangas, ora com o marido, Afonso I de Aragão, ora com o filho, ora com a irmã, ora com os incontáveis amantes com quem folgava. Imprevisível, inquieta e turbulenta, não era dotada para o governo dos seus reinos, e muita da balbúrdia que consumia a Hispânia nascia das vibrações drásticas daquele útero inconstante, daquela alma atormentada e daquela inteligência fogosa, mas limitada. Talvez por isso, notavam-se já nela muitas rugas, cabelos cinzentos, tremura nas mãos e um ligeiro arfar nos enfraquecidos pulmões.

Sem lhe dar tempo para pensar, dona Teresa alegou que a irmã fora conduzida para uma armadilha. Lanhoso era um castelo inexpugnável, resistiria meses ao cerco, e as tropas portucalenses, que estavam a ser reunidas em Guimarães, em breve fustigariam os flancos das dela, desgastando-as até à exaustão. Estes desfiladeiros são mortais, garantiu dona Teresa. Não só notara que a irmã desconhecia a agressiva geografia do local, como que parecia esgotada por semanas de combates e saudosa do seu actual amante, um nobre castelhano qualquer. Por isso, dona Teresa acrescentou sem piedade: o Gelmires vai trair-vos. Amanhã vai retirar as suas tropas, e deixar-vos à minha mercê! O exército que cercava Lanhoso era vasto, deveria contar talvez cinco mil homens, mas desses apenas metade eram os leoneses e os castelhanos de dona Urraca, os outros eram galegos e pertenciam ao arcebispo de Compostela. Se estes retirassem, a vantagem numérica de dona Urraca face aos portucalenses diminuía muito. A ira fez a rainha parecer ainda mais envelhecida e alucinada. Pode lá ser, o Gelmires ressona na sua tenda!, exclamou». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

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