Lanhoso, Março de 1120
«(…) Os seres humanos fod… muito
quando se sentem vencedores, mas para a minha investigação o mais relevante foi
descobrir que também o arcebispo Gelmires já sabia da relíquia, naquela época,
e já a desejava encontrar, tal como a rainha Urraca. Os planos de ambos contra
o Condado Portucalense e a independência do novo reino de Portugal eram
antigos...
Guimarães, Março de 1120
Em
Lanhoso, na manhã seguinte à secreta conversa entre as duas irmãs, o arcebispo
Gelmires mandou retirar as suas tropas, alegando graves crimes cometidos por
Urraca, e partiu para a fronteira fluvial do Minho, acampando aí, à espera do
desenrolar de uma conspiração que julgava dominar. Perante tal desfeita, a
rainha Urraca perdeu a relutância que na véspera ainda tivera e convenceu-se de
que Gelmires a traíra mais uma vez. Em vez de atacar Lanhoso, como esperava o
prelado de Compostela, propôs a paz a dona Teresa, e logo ali foi assinado um
tratado entre as duas filhas de Afonso VI, que, embora não cedesse à mais nova
o ambicionado trono da Galiza, lhe garantia a posse dos territórios fronteiriços
de Tui a Zamora.
Em
inesperada concórdia, dona Urraca e seus homens retiraram pela mesma estrada
que seguira Gelmires, e foram dar com ele ainda acampado. Furiosa, a rainha de
Leão e Castela mandou prender o arcebispo traidor. Quanto a nós, portucalenses,
regressámos a Guimarães acompanhados pelo príncipe, embora notando que Fernão
Peres nos tratava com secura. Só viríamos a perceber que iríamos ser
hostilizados pelo galego já na cidade, onde apareceu igualmente Gomes Nunes
Pombeiro, acompanhado pela mulher e pelas filhas. Com o tratado assinado, o
senhor de Toronho estava aliviado: nem Tui fora saqueada, nem teria de prestar
vassalagem a Urraca! Notava-se-lhe tal alegria que logo disponibilizou as suas
meninas para casarem com nobres portucalenses. Porém, Fernão Peres rejeitou a
ideia.
É
cedo para isso, rosnou. Roma não paga a traidores!, citou o Trava, enquanto a
rainha, ao seu lado, abanava a cabeça, em concordância. A curiosa Chamoa
perguntou qual o significado daquela expressão, mas o tio mandou as crianças
brincarem para o pátio do castelo, dizendo que aquelas não eram conversas para
ter à frente delas. Já cá fora, Maria e Chamoa saltaram ao eixo até que pouco
tempo depois surgiram no pátio Gomes Nunes e Elvira Trava, que com um ar
preocupado pegaram na mão das filhas e partiram. Foi a primeira vez que o meu
melhor amigo viu Chamoa Gomes, e a primeira vez que vi a minha Maria. Estávamos
também no pátio, mas eu, mais do que curioso com as moças, sentia-me intrigado,
pois desconhecia porque se desagradara o Trava. Já Afonso Henriques, apenas me
perguntou: quem é aquela, a loira?
Os cabelos cor de mel de Chamoa,
o seu sorriso encantador, os seus belos olhos verdes e as suas profusas sardas
haviam-no encantado. A prima Raimunda revelou-me que foi nesse dia que sentiu
uma primeira pontada de ciúme, enquanto me ouvia esclarecer: são as sobrinhas
do Trava, de Tui. Estava aterrada ao perceber que o seu amado príncipe se
fascinara por aquela galega loira e sardenta. E mais ficou quando o escutou
questionar a mãe, já de novo na sala: podemos ir a Tui? Lembro-me de ter visto
dona Teresa franzir a testa e resmungar: a Tui? Não há lá nada de jeito, a não
ser ursos! Ides é para Lamego, com quem vos trouxe!
Embora
ainda fôssemos crianças, percebi perfeitamente que ela se referia a meu pai e
meu tio, e recordo que o príncipe se virou para a mãe com um olhar inquisidor.
Todos havíamos já notado uma clara animosidade desde a partida de Lanhoso, mas
só ali percebemos que o sentimento de traição e deslealdade que se apoderara da
rainha e do seu amante, por terem sido abandonados pelos portucalenses em
Lanhoso, teria graves consequências. Pouco depois, a rainha informou que meu
pai e meu tio seriam afastados do governo do Condado e que Paio Soares
continuaria na Maia. O meu melhor amigo não ficou satisfeito, pois não queria
abandonar a mãe, e com alguma esperança acercou-se dela para lhe expor um
pedido. Incomodada, dona Teresa revirou os olhos». In Domingos Amaral, Assim Nasceu
Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.
Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT
JDACT, Domingos Amaral, História, Literatura, A Arte,