sábado, 20 de fevereiro de 2021

Prisioneira da Inquisição. Theresa Breslin. «Então ele acariciou sua cabeça, ao mesmo tempo que murmurava, meio que cantando, um poema no seu ouvido. Isso pareceu acalmá-la. Quando lhe perguntei o que havia dito…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Zarita

«(…) Ele permaneceu na entrada principal enquanto eu ia ao altar lateral. Eu queria pedir à Mãe de Deus que intercedesse pelas vidas de minha mãe e o filho bebé que ela acabara de dar à luz com muita dor e sangue. Precisei de vários minutos para que meus olhos se acostumassem à escuridão. Não notei a porta lateral se abrir e um vulto deslizar para o interior. Ele permaneceu no escuro, esse homem, observou-me enquanto eu caminhava na direcção da estátua da Virgem. Esperou atrás de uma coluna conforme eu erguia o véu, acendia uma vela e me ajoelhava para rezar. Então, quando abri a bolsa para apanhar algum dinheiro para uma oferenda, ele se lançou à frente.

Señorita, eu lhe imploro. Apenas uma moeda. O quê?, Assustada, levantei-me. O homem era mais alto do que eu, seus enormes olhos castanhos parecendo quase pretos num rosto esquelético e cinzento com barba por fazer. Eu preciso de dinheiro, disse ele. Andei a manhã inteira e não consegui nenhum. Não posso voltar para a minha mulher e meu filho de mãos vazias. Estendeu a mão, a palma para cima. Fiquei subitamente ciente de que estava sozinha com aquele rufião no interior da igreja vazia. Baixei o véu sobre o rosto e dei um passo para trás. Ele foi à frente, para muito perto de mim. Sua boca se abriu, exibindo dentes escurecidos e a falta destes. Um cheiro imundo e opressor. A mão estendida roçou na minha. Soltei um gritinho de sobressalto. Ramón veio correndo pelo corredor, após surgir pela porta principal.

Meu filho tem fome. Minha mulher está muito doente. Ela precisa de remédios. Uma moeda daria para comprar algo que amenizasse o seu incómodo, falou o homem para mim. Mas não liguei para os seus apelos. O cheiro dele e o contacto dos seus dedos, juntamente à pele áspera e às unhas quebradas, me causaram repulsa. Que um camponês fosse tão longe a ponto de tentar segurar a mão de uma mulher de minha posição era ultrajante. Ele me tocou, berrei. Esse homem realmente me tocou! Ramón olhou-me horrorizado. Seu rosto ficou vermelho de raiva. Você atacou essa mulher!, gritou para o pedinte. N-Não, gaguejou o homem, confuso. Eu apenas pedi uma moeda. Olhou para mim, como se eu pudesse confirmar o que ele dizia. Amedrontada, sacudi a cabeça e solucei novamente. Ele me tocou. Por causa disso, vai morrer!, bradou Ramón, e tentou puxar a espada da bainha. Ele, porém, não tinha praticado muito para conseguir fazer isso com apenas um movimento. A espada ficou presa na sua túnica, ele praguejou e sacou a adaga do cinto. O pedinte virou-se e saiu correndo pela porta lateral. Ramón saiu em perseguição, e eu, apavorada por ter sido deixada sozinha, ergui as saias e corri atrás dos dois.

Saulo

Eu tinha visto meu pai entrar na igreja pela porta lateral. Mordi o lábio, constrangido, ao me dar conta de que ele foi muito humilde e receoso de entrar pela porta principal. Ele não sabia que eu estava lá; que o seguira durante a última hora enquanto ele caminhava penosamente pela cidade, mendigando. Meu pai teria ficado envergonhado se soubesse que seu filho presenciara pessoas o rejeitando e um Grande do Reino empurrando-o para o lado e cuspindo na rua, enquanto ele passava. Ele pensava que eu estivesse com minha mãe, sentado ao lado do colchão de palha onde ela se encontrava deitada, incapaz de se mexer por causa da doença que a derrubara algumas semanas antes. Supostamente, eu devia permanecer a seu lado e tentar mantê-la quieta, pois na noite anterior ela passara a berrar palavras numa língua desconhecida para mim. Quando isso começou, meu pai ficou muito aflito e tentou silenciá-la para que os vizinhos não a ouvissem falar nessa língua estranha.

Então ele acariciou sua cabeça, ao mesmo tempo que murmurava, meio que cantando, um poema no seu ouvido. Isso pareceu acalmá-la. Quando lhe perguntei o que havia dito, ele me respondeu que era a fala dos anjos. Mas reconheci a sua expressão: eu já a tinha visto antes no seu rosto, em outros lugares onde vivemos, quando ele decidiu que estava na hora de nos mudarmos; o mesmo olhar de um animal caçado que fareja perigo. Toda a minha vida tínhamos viajado de cidade a cidade. Nessas ocasiões não pensei muito sobre o motivo disso. Nunca havia dinheiro suficiente. Qualquer um que conseguíamos meu pai usava para comprar remédios, pois a saúde de minha mãe sempre foi ruim, e geralmente um de nós tinha de ficar em casa para cuidar dela. Nossos dias eram gastos em conseguir comida suficiente para nos alimentarmos, e era isso que estava ocupando a minha mente. Eu sabia que era um pedinte melhor do que meu pai. Ele ficaria angustiado se descobrisse que, algumas vezes, recorri à mendicância para termos pão. Mas eu já fizera isso antes, tirando vantagem do facto de que parecia muito mais jovem do que realmente era. Quando nenhum de nós dois conseguia trabalho, eu me aconchegava num vão de porta até avistar alguma señorita rica se aproximando, então choramingava de modo patético». In Theresa Breslin, Prisioneira da Inquisição, 2010, Editora Galera Record, 2014, ISBN 978-850-113-940-0.

Cortesia de EGaleraR/JDACT

JDACT, Theresa Breslin, Literatura, Século XV, Religião,