terça-feira, 9 de março de 2021

A Mulher de Trinta Anos. Honoré de Balzac. «Parecia gostar de ser notado por causa da filha, e comprazia-se talvez mais que ela com os olhares que os curiosos lançavam aos seus pezinhos calçados de borzeguins…»

Cortesia de wikipedia e jdact

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Por fim, Gabriel Hanoutaux e Georges Vicaire, críticos que coassinaram um estudo sobre Balzac, escreveram a respeito de A mulher de trinta anos: Balzac prestou às mulheres um serviço imenso, que elas nunca lhe poderão agradecer suficientemente, pois duplicou para elas a idade do amor. Antes dele, todas as namoradas de romance tinham vinte anos. Ele prolongou até aos trinta, até aos quarenta anos a sua vida activa, pleiteando em seu favor a causa da natureza, da verdade. Curou o amor do preconceito da mocidade..., multiplicou, se não a alegria humana, pelo menos a consciência desta alegria». In I.P.M.

Primeiras faltas

«No começo do mês de Abril de 1813, houve um domingo cuja manhã prometia um daqueles belos dias em que os parisienses veem pela primeira vez no ano as calçadas sem lama e o céu sem nuvens. Antes do meio-dia, um cabriolé puxado por dois cavalos fogosos entrou na rua de Rivoli vindo da Castiglione, e parou atrás de várias carruagens estacionadas junto à grade recentemente aberta no meio da esplanada dos Feuillants. Essa carruagem ligeira era conduzida por um homem de aspecto preocupado e doentio; cabelos grisalhos mal cobriam-lhe o crânio amarelo e envelheciam-no precocemente; ele lançou as rédeas ao lacaio que seguia o veículo e desceu para tomar nos braços uma jovem cuja delicada beleza chamou a atenção dos ociosos que passeavam na esplanada. A mocinha deixou-se complacentemente agarrar pela cintura ao ficar de pé no estribo da carruagem, e passou os braços em volta do pescoço de seu guia, que a pôs na calçada sem amarrotar a armação do seu vestido de repes verde. Um amante não teria tido tanto cuidado. O desconhecido devia ser o pai dessa mocinha que, sem agradecer, tomou-lhe familiarmente o braço e arrastou-o bruscamente pelo jardim. O velho pai observou os olhares maravilhados de alguns rapazes, e a tristeza estampada no seu rosto apagou-se por um momento. Embora já estivesse muito distante da idade em que os homens devem contentar-se com os prazeres enganosos que a vaidade produz, ele sorriu. Pensam que és minha mulher, disse ao ouvido da jovem, endireitando-se e andando com uma lentidão que a desesperou.

Parecia gostar de ser notado por causa da filha, e comprazia-se talvez mais que ela com os olhares que os curiosos lançavam aos seus pezinhos calçados de borzeguins castanho-avermelhados, a um corpo delicioso desenhado por um vestido de cabeção e ao tenro pescoço que uma gola bordada não ocultava inteiramente. Os movimentos do andar erguiam por instantes o vestido da jovem, deixando ver, acima dos borzeguins, o contorno de uma perna finamente modelada por uma meia de seda rendada. Assim, mais de um passeante ultrapassou o casal para admirar ou para rever o rosto jovem em torno do qual se agitavam cachos de cabelos castanhos, e cujo branco vivo da carne era realçado tanto pelos reflexos do cetim rosa que forrava um elegante chapéu, quanto pelo desejo e a impaciência que crepitavam em todos os traços dessa linda criatura. Uma doce malícia animava seus belos olhos negros, em forma de amêndoa, debaixo de sobrancelhas bem arqueadas, orlados de longos cílios e banhados num fluido puro. A vida e a juventude exibiam seus tesouros nesse rosto esperto e num busto ainda gracioso apesar da cintura então colocada sob o seio. Insensível às homenagens, a jovem olhava com uma espécie de ansiedade o castelo das Tulherias, certamente o objectivo de seu impetuoso passeio. Faltavam quinze minutos para o meio-dia. Apesar dessa hora matinal, várias mulheres, todas querendo mostrar-se bem-vestidas, retornavam do castelo, não sem virarem a cabeça com ar aborrecido, como arrependidas de terem chegado tarde a um espectáculo desejado. Algumas palavras escapadas ao mau humor dessas elegantes mulheres desapontadas e colhidas no ar pela bela desconhecida haviam-na inquietado singularmente. O velho espiava com um olhar mais curioso que zombeteiro os sinais de impaciência e temor que se agitavam no rosto encantador de sua companheira, e a observava talvez com excessivo cuidado para não guardar alguma preocupação paterna.

Esse domingo era o décimo terceiro do ano de 1813. Dois dias depois, Napoleão partia para aquela fatal campanha durante a qual ia perder sucessivamente seus generais Bessières e Duroc, ganhar as memoráveis batalhas de Lutzen e de Bautzen, ver-se traído pela Áustria, pela Saxónia, pela Baviera, por Bernadotte, e disputar a terrível batalha de Leipzig. O magnífico desfile ordenado pelo imperador haveria de ser o último daqueles que por muito tempo exaltaram a admiração dos parisienses e dos estrangeiros. A velha guarda ia executar pela última vez as engenhosas manobras cuja pompa e precisão chegaram a espantar às vezes o próprio gigante, que se preparava então para o seu duelo com a Europa. Um sentimento triste levava às Tulherias uma brilhante e curiosa população. Todos pareciam adivinhar o futuro, e talvez pressentiam que a imaginação mais uma vez teria de refazer o quadro dessa cena, quando esses tempos heróicos da França adquirissem, como hoje, cores quase fabulosas». In Honoré de Balzac, A Mulher de Trinta Anos, 1829-1842, Relógio D’Água, 2019, ISBN 978-989-641-912-7.

Cortesia de Relógio D’Água/JDACT

JDACT, Honoré de Balzac, Literatura, França, Século XIX, Cultura e Conhecimento,