A Fundação. Sábado, 16 de Junho de 2002
«(…) Não!, interrompeu Armando,
sentando-se de repente. A tia nunca me faria uma coisa dessas, dizer que ia
aparecer, combinar tudo e depois abalar para outro lado! Aconteceu alguma
coisa, decerto! Consumido, voltou a levantar-se. O inspector lembrou o carro,
também desaparecido. O rapaz referiu que a vizinha vira a tia entrar para o
carro e partir. Nem o carro nem as chaves tinham regressado à casa, explicou
ele, dizendo que a tia deixava as chaves numa pequena salva prateada, numa
mesinha à entrada de casa, onde não estavam. Júlio César acendeu outro cigarro
e deu uma passa. O rapaz sentou-se outra vez. A sua tia conduz bem? Também
pensei logo num acidente. Deus me livre... Mas falei para os hospitais: Alcácer,
Setúbal. E confirmei na GNR. Não havia registo nenhum de acidente com um Opel
Corsa, que é o carro dela. Nem ninguém nas urgências. Graças a Deus..., disse o
rapaz, com alívio. Júlio César fez um ligeiro compasso de espera. Será que ele
se ia levantar outra vez? O outro não o fez. O inspector disse então: não quero
desmoralizá-lo, tenho que voltar a telefonar para esses locais, e para a GNR.O
rapaz levou as mãos à cabeça. Vou precisar de mais alguns dados, disse Júlio
César e pediu a morada da senhora e a matrícula do carro.
O rapaz levantou-se outra vez e
mostrou-lhe uma fotografia recente. Tia e sobrinho sentados no mureto da
pousada de Alcácer do Sal, com o rio e o céu ao fundo. Elvira era uma mulher de
cara larga e sorriso bonito. Gorducha, de braços e peitos fortes, transpirava
saúde. Não era o perfil habitual de uma desaparecida. Júlio César sentiu uma
ligeira impressão no estômago, o primeiro sinal suspeito do seu corpo. Não gostou.
O rapaz sentou-se. O inspector foi telefonar. Nada na GNR, nada nas urgências. Nada
também na morgue de Setúbal. Do carro, nenhum sinal. Pediu para ser avisado, se
fosse caso disso. Voltou à sala e olhou o relógio. Eram quase sete e meia.
Só tenho medo de que a tia esteja
para aí numa ribanceira..., gemeu Armando, levantando-se e indo até ao fundo da
salinha. Nestas ocasiões..., perorou Júlio César. Aconselhamos as pessoas a não
serem nem demasiado optimistas, nem demasiado pessimistas. Acendeu outro
cigarro. Elvira não tinha companheiro conhecido, nem amigos ou familiares por
perto, tirando o sobrinho. Faltava o dinheiro... A sua tia tem posses? Posses
como?, perguntou o rapaz, sentando-se de novo. Quer dizer, vive bem, tem
dinheiro? A casa é dela? Não, é alugada. Que eu saiba, não tem mais nada, além
do carro, já com uns cinco anos. Talvez guarde algum dinheiro no banco, não
sei. Nunca falei disso com ela.
Disse-o com naturalidade. Júlio César
sentiu que era verdade, que o sobrinho não fazia ideia se a tia tinha muito ou
pouco. Conferiu o relógio. Mais uns minutos e chegava o turno da noite para o
substituir. Não tinha nada para fazer a seguir. Podia ir com Armando a casa da
mulher. Sabia que não era o procedimento habitual, mas ele não tinha muita paciência
para formalidades. Levantou-se: saio agora às oito. Posso ir consigo a casa da
sua tia. Nada oficial, mas... Encontraram-se meia hora depois à entrada de Alcácer,
junto a uma bomba da Galp. Como o sobrinho dissera, a casa da senhora estava
limpa, numa ordem própria de uma mulher solitária. Júlio César examinou a sala
e os quartos. Nada nas gavetas: nem cartas, nem diários secretos. Na pequena
cozinha, uma ou duas mensagens coladas no frigorífico, coisas que ela teria de
ir buscar à pastelaria ou à lavandaria. Na sala, chamou-lhe a atenção um
livrinho de telefones. Folheou-o: a maior parte dos números eram da região de
Alcácer, mas havia um ou outro de Lisboa, e alguns de telemóveis». In
Domingos Amaral, Os Cavaleiros de São João Baptista, 2004, Leya, BIS, 2015,
ISBN 978-989-660-373-1.
Cortesia de Leya/BIS/JDACT
JDACT, Domingos Amaral, Templários, Literatura, Conhecimento,