quinta-feira, 18 de março de 2021

Prisioneira da Inquisição. Theresa Breslin. «Meu coração batia forte no peito. Não! Aquele caminho levava à praia, e a água barraria seu caminho. No primeiro degrau, o jovem o alcançou e arremeteu com sua adaga»

Cortesia de wikipedia e jdact

Saulo

«(…) Entretanto, ao me sentar debaixo de uma árvore na praça do lado de fora da igreja, naquele abafado dia de Verão, tinha esperanças de que meu pai fosse bem sucedido. Ao sair naquela manhã, ele me pedira que cuidasse de minha mãe, mas eu lhe desobedeci. Minha mãe tinha caído no sono, e segui meu pai enquanto ele ia atrás da moça ricamente vestida e de seu acompanhante. Calculei, como imaginei que ele o fez, que, se alguém como ela estava andando por essa área, só podia ter um destino. Devia estar indo ao santuário da Virgem Maria, que ficava no interior da igreja sobre o rochedo onde se podia contemplar o mar. E, se essa moça ia visitar uma igreja num dia não reservado à prática religiosa, então o mais provável era que tivesse uma tendência à piedade. Parecia ter a minha idade, com o mais lindo cabelo negro comprido preso em tranças e cachos por refinados pentes de casco de tartaruga. De vez em quando, o jovem nobre que a acompanhava virava-se para sorrir para ela e estender a mão para tocar-lhe o cabelo. Ela parecia uma boa moça, o rosto coberto apropriadamente por um véu, amável e devota. Tinha vindo a esta parte pobre da cidade para visitar o santuário, portanto isso devia significar que buscava algum favor especial, que tinha uma contrição ou uma súplica. Pensei, ela vai ouvir meu pai, do mesmo modo como espera que seu Deus a ouça. Eu estava errado.

A porta lateral da igreja abriu-se com um estrondo, e meu pai saiu correndo. Olhou de relance para os fundos da edificação; a parede do rochedo fechava a parte de trás, sem qualquer caminho visível. Ele virou e correu ao longo da lateral da igreja em direcção à frente desta. Imediatamente, pressenti o perigo. Levantei-me. A porta da igreja abriu-se novamente, e o jovem nobre que acompanhara a moça apareceu, seguido pela própria moça, bem mais atrás, as barras das saias apertadas nas mãos, correndo. O jovem perseguia meu pai, gritando loucamente. Assassino! Ladrão! Criminoso! Havia pouca gente por ali, mas quem estava na praça parou para olhar. Fiz um aceno com a mão. Achei que meu pai me tinha visto, mas ele se afastou com uma guinada para a direita, na direcção de uma escada que descia para o mar.

Meu coração batia forte no peito. Não! Aquele caminho levava à praia, e a água barraria seu caminho. No primeiro degrau, o jovem o alcançou e arremeteu com sua adaga. Ramón!, gritou a moça. Tenha cuidado! Meu pai não carregava arma alguma. Empurrou o homem chamado Ramón e o derrubou. Mas, ao fazer isso, ele mesmo caiu para trás e rolou pela escada. Juntamente aos outros espectadores, corri adiante para ver o que estava acontecendo. Abaixo de nós, meu pai, com dificuldade, se punha de pé. Mais alguns segundos e ele teria escapado; poderia ter encontrado outra passagem ou caminho pelo rochedo para fugir. Mas então um grupo de soldados surgiu marchando pelo quebra-mar. Do topo da escada, Ramón, seu perseguidor, gritou para o tenente no comando: prenda esse homem! Ele acabou de atacar uma moça no interior da igreja e tentou matar-me!

Os soldados avançaram atrás do meu pai, agarraram-no e, com muitos socos e chutos, levaram-no escada acima para enfrentar Ramón. Levem-no ao pai desta moça! O rosto do jovem nobre estava contorcido de raiva. Ele se chama dom Vicente Alonso Carbazón e é o magistrado local! E, assim, meu pai foi arrastado pelas ruas até à casa do magistrado e lançado ao chão da sua propriedade. Corri atrás deles, incapaz de pensar claramente sobre o que estava acontecendo, tão depressa estavam se desenrolando esses terríveis acontecimentos. No caminho, mais gente se reuniu atrás dos soldados para assistir ao espectáculo. Todos agora se aglomeravam diante do portão aberto. A moça abraçou o pai ao chegar à porta de casa. Ela fez menção de erguer o véu, mas ele segurou sua mão. Ele estava sem o casaco; e a gola da camisa, aberta. O cabelo estava desgrenhado, e seu corpo tremia enquanto falava. Que barulho é esse, exigiu raivosamente, que me perturba no momento em que mais preciso de paz? Ergueu a mão. Silêncio, rugiu. Então apontou para o jovem nobre. Você, Ramón Salazar, diga-me o que está acontecendo aqui. Senhor, dom Vicente..., este mendigo atacou sua filha na igreja do modo mais cruel. E, quando fui impedi-lo, ele tentou matar-me.

Dom Vicente deu um passo adiante e agrediu meu pai com um soco no rosto. Meu pai caiu no chão, cuspindo dentes e sangue na terra vermelha do pátio. Senhor, meu pai tentou falar, o mais nobre Dom... Dom Vicente desferiu um chuto na sua cabeça. Silêncio, seu vira-lata, vociferou. Se não tivesse assuntos mais urgentes a tratar, eu o julgaria aqui mesmo e faria cumprir imediatamente a sua sentença. Estamos em estado de guerra, lembrou o tenente que comandava os soldados. A rainha Isabel de Castela e seu marido, o rei Fernando de Aragão, têm afirmado que não tolerarão qualquer agitação civil enquanto lutam para reunificar todas as nossas províncias para que a Espanha se torne um país novamente. Um magistrado do município pode mandar que um traidor seja executado por um oficial militar sem um julgamento formal. E quem ofende, numa igreja, um homem ou uma mulher da nobreza deve ser condenado por traição. Apontou para uma árvore próxima.

Podemos enforcá-lo agora mesmo e encerrar aqui esse assunto. Faça isso, ordenou dom Vicente. Deu meia-volta e se preparou para entrar em sua casa. E livre-se dessa plebe no meu portão. Pai!, gritei, quando os soldados começaram a fechar as pesadas portas de madeira da propriedade. Tentei forçar a entrada, mas eles fizeram que todos recuassem agredindo-nos violentamente com a lateral da espada. Soquei a superfície de madeira; esta não cedeu. Quando ouvi o trinco ser fechado, corri em volta do muro até encontrar um local onde houvesse um apoio para o pé. Recuei alguns passos, então me lancei contra essa parte do muro e o escalei com unhas e pés até alcançar o topo. Agora conseguia ver o pátio em baixo. Um cavalariço dos estábulos recebera ordem de apanhar uma corda, e esta foi arremessada por cima da parte superior de uma frondosa árvore. A boca do meu pai estava escancarada de terror e incredulidade. Sangue escorria dos seus lábios.

Pai! A moça puxou a manga da roupa do pai. Seu pai, o magistrado, livrou-se dela com um empurrão. Vá para dentro, mandou. Você desgraçou nossa família. Pai, choramingou a moça, angustiada. Ouça-me. Esse homem não merece morrer. Mas era tarde demais. Rapidamente fizeram um laço na corda e o colocaram em volta do pescoço do meu pai, e os soldados o içaram bem alto no galho da árvore. Alguns deles riram e gracejaram enquanto faziam isso, como se fosse um desporto ver um homem chutar o vazio e desesperadamente agarrar a garganta enquanto morria sufocado. Um soldado, porém, um homem ruivo troncudo, adiantou-se e puxou com força as pernas do meu pai para acabar com a sua agonia». In Theresa Breslin, Prisioneira da Inquisição, 2010, Editora Galera Record, 2014, ISBN 978-850-113-940-0.

Cortesia de EGaleraR/JDACT

JDACT, Theresa Breslin, Literatura, Século XV, Religião,