Da violência ao culto. Espiritualidade devocional da Ordem de Cristo (1462-1536)
A violência como elemento definidor
«(…) A tradição de culto em torno
de personagens guerreiros sobrevive para além dos tempos em que a guerra de
reconquista era uma constante e projecta-se para tempos futuros. As
continuidades ao longo do tempo em matéria devocional seriam muitas, como se
pode perceber. Nesta medida, não surpreende a referência a este conjunto
hagiográfico em tempos de transição entre a Medievalidade e a Modernidade e
mesmo posteriores.
Cronologia e fontes documentais
A Ordem de
Cristo foi fundada, em Portugal, em 1319, na sequência da supressão da Ordem do
Templo, tornando-se sua herdeira patrimonial, como já salientamos. Ao
património fundiário recebido dos Templários, a Ordem de Cristo foi
acrescentando bens e igrejas que aglutinou em comendas ou adjudicou à mesa mestral,
resultantes de doações régias e particulares. Estas circunstâncias históricas contribuem
para o perfil territorial da nova instituição. A sua grande exposição ao poder
régio far-se-ia sentir também ao nível de algumas opções relacionadas com a gestão
dos bens que a Ordem geria. Por exemplo, em 1411, o rei João I dotara a Casa do
Infante Henrique com um património que geograficamente se situava na mesma
área, ou em zonas contíguas, ao da Ordem de Cristo. Assim se compreende que, em
1420, o infante Henrique tenha recebido de seu pai a administração desta Ordem.
A expansão ultramarina
representará também uma dilatação do património da Ordem de Cristo, em virtude
de o infante Henrique ter sido o seu principal promotor na primeira metade do
século XV. Em consequência, em 1456, Nicolau V entrega à Ordem o domínio e
jurisdição espiritual sobre todas as terras descobertas e a descobrir ao longo
da costa africana. Sem que as fontes documentais que utilizamos tragam qualquer
informação neste sentido, convém ter presente a propagação de referentes
devocionais por intermédio dos freires em território além mar, miscigenando-os
com tradições locais. A Ordem de Cristo, desde o início reflectiu uma ligação
estreita com a Coroa que se intensificou e até chegou a fundir-se.
A partir de 1495, a governação da
Ordem é assumida pelo próprio rei Manuel I, na continuidade da sua actuação
como Mestre-Governador já desde 1484. A cronologia seleccionada para este
trabalho está balizada entre 1462 e 1536, anos que correspondem aos registos de
visitações conhecidos para a Ordem de Cristo, entre os meados dos séculos XV e
XVI (Costa, 2012: 415-437, altura esta em que se verificaram transformações de
fundo relacionadas com a incorporação definitiva das Ordens de Cristo, de
Santiago e de Avis na Coroa. Foram identificados registos, com informação de
carácter hagiográfico, para os anos 1462, 1505, 1507 e 1536. Se das visitações
feitas até à década de 60 do século XV não se conhecem os respectivos relatórios
resultantes da actividade dos visitadores, para o período indicado (1462-1536)
são vários os textos conhecidos e que vão reportando uma situação muito estável
ao longo do tempo. Por seu turno, os registos que se conservam de meados dos
anos 30 do século XVI são particularmente interessantes, pois foram produzidos
no âmbito da reforma da Ordem encomendada pelo rei a fr. António de Lisboa. Em
74 anos foram visitadas cerca de meia centena de localidades, dispersas
territorialmente numa área que corresponde à linha norte do rio Tejo, com
especial concentração junto a Tomar, na zona da Beira Interior e de Trás-os-Montes,
ambas perto da fronteira com Castela. Este conjunto espelha completamente a
área de implantação da Ordem de Cristo. Em certos casos, as visitações
reincidem nos mesmos locais. Entre estes, apenas se contabilizaram uma vez os
santos patronos e os que adornavam os diversos altares das respectivas igrejas,
capelas e ermidas. Outras vezes, apesar de se conhecer a localidade visitada,
não é nomeado qualquer templo, pelo que não puderam ser incluídos neste estudo».
In
Paula P. Costa e Joana Lencart, Da violência ao culto: santos guerreiros e
mártires na espiritualidade devocional da Ordem de Cristo (1462-1536), Roda da
Fortuna. Revista Eletrónica sobre
Antiguidade e Medievo, 2019, Volume 8, Número 1, ISSN: 2014-7430.
Cortesia de Roda da Fortuna/ Revista Eletrónica sobre Antiguidade e Medievo/JDACT
JDACT, Paula Pinto Costa, Joana Lencart, Cultura e Conhecimento,