28 de Maio de 1944
«(…) Alguns minutos antes, o
alemão dera um susto em Flick ao pedir a ela que o fotografasse ao lado da
companheira, com o castelo ao fundo. O pedido fora feito com delicadeza, um sorriso
simpático e apenas um leve sotaque. Para Flick, era um martírio ter de lidar
com aquela distracção num momento tão importante, mas uma recusa poderia
levantar suspeitas, ainda mais sendo ela, supostamente, uma moradora da região
que não tinha nada para fazer além de bebericar seu vinho na varanda de um bar.
Assim sendo, ela respondera exactamente como uma francesa legítima teria feito,
isto é, trazendo ao rosto uma expressão de frieza e indiferença antes de
aquiescer. Aquele era um momento absurdo, um momento de pânico: a agente
secreta britânica fotografando o oficial alemão e sua mariposa, ambos sorrindo,
enquanto o sino da igreja contava os segundos para a explosão. O alemão
agradecera e se oferecera para lhe pagar um drink. Flick havia recusado com
firmeza: nenhuma francesa podia beber com um alemão a menos que estivesse
preparada para ser chamada de pu… O homem assentira de forma compreensiva e ela
voltara para o lado do marido.
Embora parecesse estar num dia de
folga e não desse a impressão de estar armado, portanto não representasse
perigo imediato, o oficial despertara em Flick uma incómoda sensação de
desconfiança. Reflectindo melhor naqueles últimos instantes de calma, ela
chegara à conclusão de que o homem definitivamente não estava ali a turismo.
Percebia-se nele um permanente estado de alerta, uma prontidão que não
combinava com alguém que estava ali apenas para admirar arquitectura. A mulher
talvez fosse o que parecia ser, mas ele, não. Ele era outra coisa. Antes que
ela pudesse definir o quê, o sino parou de tocar. Michel terminou sua cerveja e
secou a boca com as costas da mão. Ele e Flick se levantaram. Procurando
aparentar naturalidade, dirigiram-se para a porta do bar e lá ficaram,
abrigando-se sem chamar a atenção.
Dieter Franck havia notado a moça
na varanda do bar assim que chegara à praça. Sempre notava as moças bonitas.
Aquela em particular era uma bela amostra de sex appeal. Os cabelos eram de um louro acinzentado, os
olhos, verde-claros e o sangue decerto tinha algo de alemão, o que não era raro
naquela parte da França, tão próxima à fronteira com a Alemanha. O vestido que
cobria o corpo miúdo não era lá muito diferente de um saco de linhagem, mas a moça
acrescentara à composição uma echarpe amarela que, apesar do algodão barato,
lhe dava um charme tipicamente francês. Ao abordá-la, ele havia percebido
aquela centelha de medo que os franceses costumavam exibir diante dos algozes
alemães; mas depois, imediatamente depois,
notara uma expressão muito mal disfarçada de afronta que despertara seu
interesse. Ela estava acompanhada de um homem boa-pinta e um tanto indiferente
que decerto era o marido. Dieter solicitara a foto apenas porque queria falar
com ela. Era casado, tinha dois filhos lindos em Colónia e hospedava Stéphanie
no apartamento que mantinha em Paris, mas nada que o impedisse de abordar outra
mulher na rua. Mulheres bonitas eram como os quadros impressionistas que ele
coleccionava: possuir um não o impedia de desejar outros tantos.
As francesas eram as mulheres
mais lindas do mundo. Mas tudo na França era bonito: as pontes, os bulevares,
até mesmo os aparelhos de jantar feitos de porcelana. Dieter adorava as boites
parisienses, o champanhe, o foie
gras, as baguetes quentinhas. Adorava comprar suas camisas e
gravatas na famosa Charvet defronte ao hotel Ritz. Ficaria feliz em poder morar
em Paris para sempre. Ele não sabia onde havia adquirido gostos tão refinados.
Seu pai era professor de música, a única forma de arte em que os alemães, e não
os franceses, eram os mestres absolutos. Mas Dieter não tinha a menor vocação
para a aridez da vida académica do pai e deixara a família horrorizada ao
decidir entrar para a polícia, um dos primeiros universitários na Alemanha a fazê-lo.
Por volta de 1939 já chefiava o Departamento de Investigações Criminais da polícia
de Colónia. Em Maio de 1940, quando os tanques do general Heinz Guderian
atravessaram o rio Mosa na altura de Sedan e abriram caminho de forma triunfal
através da França até ao canal da Mancha em apenas uma semana, Dieter cedera a
um impulso e se candidatara a um posto no Exército. Em vista da sua experiência
na polícia, imediatamente fora colocado na inteligência. Falava francês
fluente, além de um pouco de inglês, e por isso fora incumbido de interrogar os
inimigos capturados. Tinha um talento especial para a tarefa e sentia um grande
orgulho sempre que conseguia extrair alguma informação que contribuía para a
vitória do seu país em alguma batalha. Sua eficiência chegara aos ouvidos de
ninguém menos do que o marechal de campo Erwin Rommel, no norte da África.
Dieter
não tinha nenhum pudor de recorrer à tortura quando julgava necessário, mas preferia
dobrar seus interrogados com métodos mais subtis, os mesmos que usara com Stéphanie.
Esperta, elegante e sensual, Stéphanie fora proprietária de uma chapelaria que vendia
chapéus femininos dos mais chiques de Paris, e também dos mais caros. Mas tinha
uma avó judia. Já havia perdido a sua loja e passara seis meses numa prisão
francesa quando, prestes a ser transferida para um campo na Alemanha, fora
resgatada por Dieter. Ele poderia ter estuprado a chapeleira se quisesse. Na
certa era o que ela esperava de um oficial alemão. Ninguém teria erguido a voz
para protestar, muito menos exigido algum tipo de punição. Mas, em vez disso,
ele alimentara a moça, comprara roupas novas para ela, lhe dera o quarto extra
que tinha no apartamento, tratando-a com carinho e respeito até que, certa
noite, após um jantar de foie de
veau com uma garrafa de La Tache, ele a havia seduzido deliciosamente
no sofá da sala, diante das chamas de uma lareira». In Ken Follett, As Espias do Dia
D, 2001, Editora Arqueiro, 2015, ISBN 978- 858-041-410-3.
Cortesia de EArqueiro/JDACT
JDACT, Ken Follett, Literatura, II Guerra Mundial,