A Fundação. Sábado, 16 de Junho de 2002
«(…) Então, doutor João Pedro,
tem o trabalho pronto na segunda-feira? A voz forte do Dr. Marcos Portugal soara
atrás dele, assustando-o e interrompendo as suas recordações. Ao virar-se,
quase entornou o whisky com gelo que o barman lhe estendia. Boa noite, disse
atabalhoado. O olhar vivo e frio do dr. Marcos Portugal fixou-o, enquanto lhe
apertava a mão com força. Quero o dossiê organizado sem falta na segunda. O
tipo está feroz. Concordou, submisso. Tinha dúvidas sobre o trabalho, mas não
era o momento oportuno para esclarecimentos. Venha, quero apresentar-lhe uma
pessoa, comandou o dr. Marcos Portugal. João Pedro seguiu-o até à mesa, onde se
sentava a bela mulher loira, esplendorosa no seu vestido vermelho.
Liliana, quero que conheças um
dos nossos mais promissores investimentos... Foi assim que o dr. Marcos
Portugal o apresentou: como se ele fosse uma acção, um título do Tesouro.
Depois de beijar a diva loura, João Pedro sentou-se, observando a sala. Ecoavam
os primeiros acordes de uma valsa e, como de costume, a noiva abandonou o seu
lugar na mesa principal e foi à procura do seu pai, para abrir o baile. Depois
de passar uns minutos gabando a sua última compra, um Mercedes fantástico, o dr.
Marcos Portugal levantou-se: falamos na segunda, às oito e meia. João Pedro
deixou-o afastar-se. Acendeu um cigarro. Na pista, a noiva dançava com o pai, o
dr. Campos Neves, sócio de Marcos Portugal. Inês chamava-o com gestos e João Pedro
começou a levantar-se, mas Liliana deteve-o, colocando-lhe um braço sobre o
seu: gosta de trabalhar com ele? Olhou-a nos olhos. Que raio de pergunta era
aquela? É intenso. Abrasivo, respondeu João Pedro, defensivo. Ela sorriu,
enigmática. Depois, levou à boca o copo de vinho branco e sorveu um pouco.
Voltou a sorrir e perguntou: nada de dúvidas morais? João Pedro deu uma passa
no seu cigarro. O Danúbio Azul, habitual valsa de abertura nos casamentos,
chegava ao clímax, e muitos pares de convidados avançavam para a pista, depois
de o pai da noiva a ter passado para as mãos do seu recentíssimo marido. Sou advogado,
não sou padre, respondeu. Liliana fez uma careta e brincou: parece tenso... É
sempre assim na presença de mulheres bonitas?
Passou-lhe um pensamento pelo cérebro:
só quando são as escort girls do meu patrão. Da sua mesa, Inês
chamava-o, agitando os braços. Ou só fica tenso quando elas são as concubinas
do seu patrão? João Pedro ficou siderado. Ela deu uma gargalhada: quase que se
consegue ouvir o seu cérebro a trabalhar: o que é que ela quer? E se vai contar
tudo ao boss? E se disser a palavra errada, a sua vida profissional vai pelo ralo,
não é? João Pedro fez um sorriso forçado. Liliana acendeu um cigarro, inalou e
depois comentou: as pessoas têm medo dele... Você também tem medo dele? O que
era aquilo? Quem era esta mulher? Lionel Ritchie começou a cantar Ali Night Long
e, na pista de dança, cresceu a excitação, como se as pessoas estivessem a viver
o momento mais divertido das suas vidas. Medo? Porquê? Sem lhe ligar, Liliana
levantou-se e depois baixou-se na direcção dele, de modo que as suas caras
ficaram muito próximas: ora aí está um bom mistério para entreter os seus neurónios...
João Pedro viu-a a afastar-se, abanando as ancas. Quem era esta mulher? Seria mesmo
uma escort girl? Mas, pela forma como falava, dir-se-ia que conhecia a
vida do escritório. Que tipo de jogo era aquele? Deixou-se ficar sentado, a
digerir as dúvidas. Mariana continuava sem dar sinais de vida. Ainda pensou em
perguntar ao pai por ela. Mas não era boa ideia: pai e filha não se davam bem.
Recordou o caso que tinha em mãos:
uma operação de fuga ao fisco. A fortuna de um construtor civil posta a salvo.
Vários milhões a voarem pelo ciberespaço, de off-shore em off-shore. E os
nomes, estranhos, das empresas: Abraxas, Cifra Atbash, Leviktikon, Templer One,
Agnus Mix, Salomon et al, Baph-Omet. Pareciam nomes históricos, religiosos,
medievais. Lembrou-se das referências do professor Bernardino aos Templários e
do murmúrio que ouvira sobre Marcos Portugal ser maçon, ou templário (quem
comentara? O professor Bernardino?). Correu a tenda com olhar, procurando o
historiador. No bar e nas mesas não existia sinal dele, nem da sua pequenina
mulher. Na pista, onde uma turba desordenada imitava os movimentos corporais
dos Village People e cantava o YMCA, também não descobriu o enorme viking.
Arrependeu-se da forma abrupta como o abandonara, agora que tinha interesse em
falar com ele. O seu pensamento regressou à operação fiscal. Fora montada há um
ano, antes de João Pedro ser contratado. Só que a coisa complicara-se: o
cliente acusava agora o escritório de o ter prejudicado seriamente. À primeira
vista, Parecia grave. O dr. Marcos Portugal dera-lhe ordens precisas: prove
ao cliente que o dinheiro não desapareceu, dê por onde der. Sentira um
arrepio na espinha. Recordou as perguntas da noite: não tem dúvidas morais?,
perguntara Liliana». In Domingos Amaral, Os Cavaleiros de São
João Baptista, 2004, Leya, BIS, 2015, ISBN 978-989-660-373-1.
Cortesia de Leya/BIS/JDACT
JDACT, Domingos Amaral, Templários, Literatura, Conhecimento,