quarta-feira, 4 de agosto de 2021

Alberto S. Santos. O Segredo de Compostela. «Quando analisava a frio os acontecimentos durante a viagem, e aproveitando uma conversa descontraída com os servos, Lucídio achou que fora a melhor decisão»

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Aseconia (Santiago de Compostela) Bracara Augusta (Braga)

Toma o pequeno Prisciliano! É o teu filho! Priscila estendia as mãos para o esposo, sobre as quais repousava uma criança de olhos abertos e rosto sereno. Lucídio segurou-a, desajeitado, mas o mais delicadamente que pode. Afastou ligeiramente os panos coloridos e ficou a contemplar o bebé, como se o tempo tivesse parado. Então, Lucídio?!, acordou-o Priscila, com uma ponta de inquietação. O marido ergueu-o no ar e arvorou um sorriso embevecido. Reconheço-te, Prisciliano, como meu filho, autorizo-te a viver e não permitirei a tua exposição, expressou, afetado, o sublatus, o ritual sagrado de reconhecimento paternal, também proferido pelo seu pai, avô e assim sucessivamente, até à madrugada dos tempos. Orgulhoso, devolveu à mãe o petiz, que o colocou num berço ciosamente fabricado pelos carpinteiros da villa, decorado com motivos florais. Priscila sentou-se na ilharga da cama e Lucídio imitou-a, mesmo ao lado, abraçando a esposa. Um aperto carregado de carinho e afecto. Valéria informou-me que o pequeno está de boa saúde, referiu, pausadamente e em tom baixo. E logo me disse que, ao nono dia, o purificaram no altar da casa e lhe chamaram Prisciliano…

Tínhamos combinado! Se fosse rapaz, ficaria ligado ao meu nome, se fosse rapariga, ao teu. Quem sabe, ainda teremos uma Lucídia!, respondeu, rindo e encostando a cabeça ao ombro do marido. Lucídio acabava de voltar da jornada bracarense, a meio de um dia soalheiro, a tempo de um frugal prandium de pão, queijo e azeitonas. Priscila, preocupada, ainda aguardara pelo esposo até à primeira vigília da noite anterior, pois achava que já devia ter chegado, mas em vão. Dormira intranquila. Porque te atrasaste tanto? Tive umas reuniões imprevistas…, de última hora, respondeu, com o olhar distante. Não quis apoquentar a esposa com os acontecimentos da capital. Percebeu que o que interessava mesmo ao gordo Ithacio era encontrar um bom motivo para convencer o rico proprietário do norte a deixar umas moedas a mais por baixo da mesa. Não tenho recibo para lhe dar… O patrão saiu para as termas!, dissera-lhe o criado de Ithacio, sabedor dos artifícios do seu senhor, quando lhe apresentara a conta do imposto alegadamente em débito e que, tão certo como o destino, não iria parar aos exauridos cofres do imperador Constâncio.

Quando analisava a frio os acontecimentos durante a viagem, e aproveitando uma conversa descontraída com os servos, Lucídio achou que fora a melhor decisão. Muito embora não fosse devoto de Ísis, concluíra, como assegurou com Valéria logo à chegada, que tudo não passara do ancestral rito propiciatório de bonança tão costumeiro na Galécia. No caso, em favor do próprio filho! E que funcionou na plenitude, como lhe asseverou a experiente mulher, quando confidenciou: Ísis continua protectora e maternalmente ligada aos seus mais fervorosos adeptos! Os sacrifícios poderiam ser enquadrados, se uma mente maldosa e astuciosa os acusasse, na categoria de maleficium. Por isso, quando confrontado com a falsa nota fiscal, Lucídio preferiu não correr riscos e pagou o que o soberbo Ithacio lhe receitou. O caso ficaria por ali! O que sobrou daquele episódio e que continuava como um pingo de vinagre a azedar o coração de Lucídio foi não saber ao certo quem fora o apressado delator da visita de Priscila ao santuário de Ísis. O pai de Prisciliano arrumou interiormente a questão, conjecturando uma plausível vinda de um espião de Ithacio aos seus domínios em busca de informação que pudesse usar contra si, na extorsão. Mas estava enganado. Em Bracara Augusta, o cobrador de impostos celebrava com taças de vinho o pecúlio que habilmente surripiara a Lucídio.

Este caiu como um tordo!, dizia, ébrio e deitado sobre a mesa do triclinium, para o escravo de confiança, que o ajudava nos serviços sujos. Sim, não tinha escapatória… O crime de maleficium é o caminho certo para a desgraça. O homem ia morrendo de susto. Quanto não vale manter a rede de informadores! Uma informação, pequena ou incipiente que seja, pode valer uma fortuna! Aprendi em Roma, a grande escola do império. Vá, enche-me a taça e bebe também um trago! Fizeste um excelente serviço. Senhor, estou às suas ordens. Cumpro o que me manda! Na ampla sala de refeições da domus bracarense, embelezada de pinturas e mosaicos finos com desenhos de motivos florais, entrara o filho mais velho de Ithacio, que tinha o nome do pai. Ithacito, vem cá! O redondo rapaz, ainda de tenra idade, mas que era uma fiel imitação paterna na gula como na astúcia, aproximou-se. Sim, meu pai! Em que posso ajudar? Virando-se para o escravo, ordenou o senhor da casa: o meu filho vai contigo à basílica! Leva este donativo ao bispo, pois o que foi tirado a um rico idólatra não é pecado aos olhos de Deus. O bispo precisa de ajuda para as obras do templo e para engrandecer a comunidade cristã. E eu preciso de ficar bem visto». In Alberto S. Santos, O Segredo de Compostela, Porto Editora, 2013, ISBN 978-972-068-096-9.

Cortesia de PEditora/JDACT

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