Brasil
«(…) Antes de
acabar a quarentena, engravidou outra vez. Desta teve enjoos, dores de cabeça, quebras
de tensão e, no momento do parto, as coisas pareceram complicar-se de tal
maneira que a parteira decidiu recorrer aos grandes remédios. Mandou uma
escrava prevenir o padre, que por sua vez mandou o sacristão tocar o sino da
igreja nove vezes, enquanto outras mulheres calcorreavam Vila Rica procurando
nove meninas virgens chamadas Maria, que deviam rezar nove ave-marias para que
tudo batesse certo e a mulher do governador pudesse dar à luz o seu filho sem
risco de vida para nenhum dos dois. As escravas bateram a várias portas sem
grande resultado, porque, ainda que encontrassem Marias com fartura, ou não
possuíam hímen, ou não sabiam dizer as orações. O que se pensou que demorasse
meia hora levou tanto tempo que o último filho, José Tomás, nasceu antes que
conseguissem reunir as nove meninas. De qualquer forma, o expediente não teria
resultado, porque o padre, convencido de que era mais fácil encontrar as
meninas, apressou o acólito a dar as badaladas, e esse meio só era eficaz se
tudo se fizesse ao mesmo tempo. Maria José, debilitada por três gravidezes em tão
pouco tempo, viu-se obrigada a recorrer a uma ama, porque não tinha leite
suficiente para dar de mamar a dois filhos e preferiu reservar o seu para o recém-nascido.
Custou-lhe entregar Isabel ao peito de uma desconhecida, ainda que a sua condição
lho permitisse, não só por uma questão de posses, mas porque a legislação
concedia esse privilégio às fidalgas. Havia mulheres do seu meio que não
prescindiam mesmo desse direito e secavam o leite pondo folhas de sabugueiro
enxutas sobre os seios. Mas ela não partilhava dessas ideias nem achava que
amamentar lhe estragasse o peito, pelo contrário, sentia-se mais perto dos filhos
quando lhes dava de mamar e, sempre que Rodrigo assistia a esse momento quase mágico,
um elo de ternura envolvia-os a ambos. Procurou saber tudo sobre as amas,
escolhidas entre as brancas e portuguesas, desde o estado de saúde, não só do
corpo como também da alma, até ao lugar onde tinham morado desde a infância e
se eram felizes, porque achava que o leite devia azedar com as agruras da vida.
Descartou as que não preenchiam os requisitos e contratou uma que caiu nas suas
graças pelo sorriso amplo e o olhar luminoso, não tinha a opulência das outras,
mas da alimentação se encarregariam na cozinha por ordens estritas suas, não
fosse comer algo que desarranjasse os humores da sua filha.
Entretanto, Gregório,
Pedro, Diogo e Eugénia sentiam que lhes tinham crescido asas nos braços e nas
pernas e, de tanto andarem em liberdade, começaram a perder a cor branca de cera
que tinham trazido do reino e adquiriram um suave tom dourado, porque, mesmo
obrigados a usarem chapéu, o ar morno parecia bronzeá-los ao passar ao de leve
pelos corpinhos que cresciam e espigavam como trigo. Conheceram o prazer de
provar frutos exóticos, arrancados das árvores, ainda quentes do sol, o sumo a
escorrer pelos bracinhos finos que iam lavar rapidamente ao riacho ou à fonte,
para que ninguém suspeitasse de que passavam o dia a comer coisas proibidas,
desrespeitando as horas impostas de intervalo entre o almoço, às nove da manhã,
e o jantar, às três da tarde. O pior era quando tinham de esconder alguma dor
de barriga ou a falta de apetite com a desculpa de que o sono os vencia,
esperando que os mandassem dormir a sesta e só tivessem de voltar a sentar-se à
mesa à hora do chá, pelas sete, quando o Sol se punha. Aprenderam a brincar com
o que a natureza lhes proporcionava, faziam exércitos de escaravelhos, seguiam
os trilhos das formigas, partiam à descoberta de aves raras de cores nunca vistas
sem terem praticamente de se afastar da casa. Os macacos amestrados para lhes
tirarem os piolhos, em vez de fazerem o seu trabalho, corriam atrás deles e
roubavam-lhes insectos, folhas secas, vagens e sementes que eles guardavam em
esconderijos como se fossem pequenos tesouros. Certos dias faziam de conta que
o topo de uma árvore era a torre de vigia de um navio e davam ordens a uma
armada imaginária que navegava nas ondas da floresta para que atacasse os
barcos de piratas que tentavam invadir o seu reino.
Mas nem tudo podia pertencer ao mundo da fantasia. Gregório
tinha chegado ao continente americano com algumas luzes, Pedro ainda sabia
pouca coisa e Diogo, entre viagem, adaptação e os nascimentos dos irmãos mais
novos, já passara da idade em que se começava normalmente a aprendizagem: sete
anos. Ao tomar consciência de que tinha omitido no rol das suas obrigações essa
parte importante da formação dos filhos, Rodrigo mandou o seu secretário
procurar o melhor preceptor e que não demorasse a cumprir com o que lhe pedia.
Nem incomodou a mulher com a escolha, via-a demasiado atarefada com bebés, amas
e costumes aos quais tinha dificuldade em adaptar-se. Apresentou-se um homem
com cartas de recomendação de famílias respeitáveis e, pelo trato e a maneira
como respondia às suas perguntas, contratou-o de imediato». In Cristina
Norton, O Segredo da Bastarda, 2002, Oficina do Livro, 2012, ISBN
978-989-231-047-3.
Cortesia de OdoLivro/JDACT
Cristina Norton, Escrita, JDACT, Literatura, Narrativa, MLCT, MLAC,