«(…) Agora sim. Fechava como devia, com uma esperança, com uma pequena alegria. Fazia questão de não ser completamente sincera no seu diário, quando os acontecimentos do dia a levassem ao desânimo e à tristeza. Releu o que escrevera e fechou o caderno. Trouxera do quarto a camisa de dormir, uma camisa branca, afogada, sem decote, com as mangas compridas, porque as noites ainda estavam frescas. Despiu-se rapidamente. O seu corpo deselegante, liberto do constrangimento do vestuário, soltou-se e ficou mais pesado e irregular. O soutien-gorge vincava-lhe as costas. Quando o tirou, um vergão vermelho ficou a rodear-lhe o corpo como a marca de uma chicotada. Enfiou a camisa e, depois de completar o arranjo nocturno, foi para o quarto. Isaura não largava o livro. Tinha o braço livre curvado sobre a cabeça, e a posição deixava-lhe visível a axila enegrecida e o começo dos seios. Absorta na leitura, nem se mexeu quando a irmã se deitou. Já é tarde, Isaura. Deixa isso, murmurou Adriana. Já vai!, respondeu, impaciente. Não tenho culpa de que não gostes de ler. Adriana encolheu os ombros, num movimento que lhe era peculiar. Voltou as costas à irmã, puxou a roupa para cima de modo a evitar que a luz lhe batesse nos olhos e daí a pouco adormecia. Isaura continuou a ler. Tinha que acabar o livro nessa noite porque o prazo do aluguer acabava no dia seguinte. Era perto da uma hora quando chegou ao fim. Ardiam-lhe os olhos e tinha o cérebro excitado. Pôs o livro na mesa de cabeceira e apagou a luz. A irmã dormia. Ouvia-lhe a respiração ritmada e regular, e teve um movimento de mau humor. No seu entender, Adriana era de gelo, e aquele diário uma criancice para fazer acreditar que tinha mistérios na sua vida. No quarto havia uma ténue luminosidade proveniente de um candeeiro da rua. Ouvia-se no escuro o roer de um insecto da madeira. Do quarto ao lado vieram vozes abafadas: tia Amélia sonhava alto. Todo o prédio dormia. De olhos abertos para a noite, as mãos cruzadas atrás da cabeça, Isaura pensava.
Não
façam barulho. Bem sabem que não gosto de perturbar o sono da vizinhança, murmurou Anselmo. Subia a escada, levando atrás de
si a mulher e a filha, e iluminava o caminho acendendo fósforos. Distraído com
as recomendações, deixou-se queimar. Soltou uma interjeição involuntária e
riscou novo fósforo. Maria Cláudia sufocava de riso. A mãe ralhou em voz baixa: então, menina, que propósitos são
esses? Chegavam a casa.
Entraram a medo, como gatunos.
Mal chegaram à cozinha, Rosália sentou-se num banco: ai, que cansada! Descalçou os sapatos e as meias e
mostrou os pés inchados:
olhem
para isto!... Tens albumina, é
o que é, declarou o
marido. Credo!, sorriu Maria Cláudia. O pai não faz a
coisa por menos. Se o teu pai diz
que tenho albumina, é porque é verdade, replicou a mãe. Anselmo acenou a cabeça com
gravidade. Fixava atentamente os pés da mulher e da observação tirava novas
razões para o diagnóstico:
é o
que eu digo... O pequeno rosto
de Maria Cláudia franziu-se de desgosto. Aquele espectáculo dos pés da mãe a possível
doença aborreciam-na. Tudo que fosse feio a aborrecia. Mais para se furtar à conversa do
que por amor do trabalho, tirou três chávenas do armário e encheu-as de chá.
Deixavam sempre o termo cheio, para o regresso. Aqueles cinco minutos dedicados
à pequena refeição davam-lhes uma sensação toda particular, como se de repente
tivessem deixado a mediocridade da sua vida para subir uns furos na escala do
bem-estar económico. A cozinha desaparecia para dar lugar a uma salinha íntima
com móveis caros e quadros pelas paredes e um piano a um canto. Rosália deixava
de ter albumina, Maria Cláudia trazia um vestido da última moda. Só Anselmo não
mudava. Era sempre o mesmo homem. Distinto, alto, decorativo, um pouco curvado,
calvo, e cofiando o pequeno bigode. O rosto parado e inexpressivo, produto de
um esforço de anos orientado no sentido de represar as emoções para garantia da
respeitabilidade. Infelizmente,
eram apenas cinco minutos. Os pés descalços de Rosália acabaram por dominar a
cena, e Maria Cláudia foi a primeira a deitar-se».
In
José Saramago, Claraboia, 1953, Editorial Caminho, 1991, 2011, ISBN
978-972-212-441-6.
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