quarta-feira, 25 de agosto de 2021

Arrancados da Terra. Lira Neto. «… agora, St' James Street sofre duas suaves inclinações à direita, mudando de nome e tornando-se, primeiro, Pearl Street (Rua da Pérola, assim baptizada graças às muitas ostras perlíferas encontradas na região pelos antigo, colonizadores)»

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Para viver o sem-fim da eternidade

«(…) Os poucos que têm oportunidade de entrar no local, com a devida autorização do reservado administrador oficial, constatam que, entre as covas remanescentes, a mais antiga está datada de 1683, portanto, decorridas quase três décadas da fundação do cemitério. A lápide original de pedra tosca, com epitáfio em versos hebraicos, foi posteriormente substituída por outra, de metal, com texto em ladino, língua semelhante ao espanhol arcaico falada pelos judeus sefarditas, isto é, os naturais de Sefarad, o nome citado no Antigo Testamento para uma terra que seria, segundo a tradição judaica, a Península Ibérica. Numa tradução livre, indica:

DEBAIXO DESTA LOUSA SEPULTADO,

JAZ BEN]AMIN BUENO DE MESQUITA.

FALECEU E DESTE MUNDO FOI TOMADO

NO 4 DE CHESHVAN, SUA ALMA BENDITA

AQUI DOS VIVENTES SEPARADA

ESPERA POR SEU DEUS, QUE RESSUSCITA

OS MORTOS DO SEU POVO COM PIEDADE

PARA VIVER O SEM.FIM DA ETERNIDADE

(1683)

O Cheshvan é o oitavo mês do calendário eclesiástico judaico. Além do idioma, o apelido do morto atesta a sua origem ibérica. Os que continuam a seguir por St' James com destino ao extremo sul de Manhattan mal desconfiam de que, talvez por não terem reparado no pequeno cemitério, deixaram para trás um dos possíveis limiares de uma história tão terrível quanto admirável, cheia de peripécias, reviravoltas e episódios trágicos que roçam o inacreditável, e, por isso mesmo, constituída por muitas incertezas, controvérsias e incógnitas.

Nesse ponto, o que mais chama a atenção são os grandes condomínios que se erguem dos dois lados da rua. É o caso do sinuoso Chatham Green, prédio de 21 andares e arquitectura modernista, construído em forma de S. Nada mais nas imediações remete para a época da instalação do cemitério. A ilha de Manhattan era atravessada por regatos, pântanos e quedas de água, ocupada por florestas de pinheiros, carvalhos e castanheiros imemoriais. Os copiosos estuários abrigavam colónias de mexilhões e mariscos. Alces e veados pastavam incautos pelos bosques, espiados por lobos selvagens' Os ursos também eram numerosos e ameaçadores. Cisnes, patos e gansos nadavam em rios cheios de salmões, trutas e linguados partilhando os alagadiços com mergulhões, garças e castores de pele lustrosa.

O pequeno núcleo habitacional existente no século XVII situava-se para além da área onde, agora, St' James Street sofre duas suaves inclinações à direita, mudando de nome e tornando-se, primeiro, Pearl Street (Rua da Pérola, assim baptizada graças às muitas ostras perlíferas encontradas na região pelos antigo, colonizadores); depois, Water Street (Rua da Água, pelo facto de, antes de os aterros centenários a terem distanciado cada vez mais das margens do East River, ela ter demarcado a costa da zona baixa a leste da ilha). Hoje, a rua dista cerca de 200 metros dos armazéns e barracões da antiga zona portuária, os mesmos que, revitalizados, abrigam hoje lojas de marca, restaurantes sofisticados e as instalações do museu marítimo da cidade. A velha Water Street, que antes margeava o rio, tornou-se um corredor de titãs arquitectónicos de vidro, cimento e aço. No ponto em que cruza a célebre Wall Street, chega-se por fim ao limite geográfico do que, em 1656, data da fundação da necrópole dos judeus, era então considerado o início da área urbana da Manhattan colonial». In Lira Neto, Arrancados da Terra, 2021, Penguin Random House Grupo Editorial, 2021, ISBN 978-989-784-257-3.

Cortesia de PRHGEditorial/JDACT

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