sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Explicação dos Pássaros. António Lobo Antunes. «Os Novos Emissores em Marcha. Quando o Telefone Toca. Que Quer Ouvir? Pensa Como o teu cabelo era castanho, os gestos decididos, nesse tempo»

dact

«(…) Como é que se sente?, perguntou numa voz derrotada, enquanto observava a mãe a pensar As lágrimas estão já do outro lado dos teus olhos, deslizam por dentro da cabeça, para a garganta, num ardor ácido de bagaço. Não a achas com melhor aspecto?, perguntaram de súbito à sua esquerda e ele viu, sentada na única poltrona do quarto, entalada entre a cama e a janela, uma prima remota com um livro aberto nos joelhos: Aposto que és a única pessoa da família disposta a acompanhar um moribundo. Colados ao vidro os prédios feios, desbotados das Amoreiras: Ainda estaria viva quando chegasse a sua vez? Mais corada, confirmei eu, mais cheia. E para mim mesmo, envergonhado: Desculpa mãe. Quando eu era pequeno e adoecia de gripe trazias-me a velha telefonia Philips do pai para o quarto, e eu ficava a escutar os programas de discos pedidos no torpor morno da febre. Os Novos Emissores em Marcha. Quando o Telefone Toca. Que Quer Ouvir? Pensa Como o teu cabelo era castanho, os gestos decididos, nesse tempo. Nunca deixarias, imaginava ele, que nos acontecesse mal. Os miúdos?, disse a mãe da infinita distância de dois metros. Havia botijas ferrugentas de oxigénio à cabeceira, um aspirador de secreções ao pé do lavatório, um ramo de flores numa jarra de vidro facetado, sobre um naperon. Óptimos, mãe, óptimos. Sem problemas. Sempre que os vou buscar ao colégio perguntam por si, e assaltou-o a certeza de que a mãe se apercebera da pausa, do segundo de espera, da mentira. Entravam no carro de roldão, empurrando-se um ao outro, como cãezinhos, para o beijarem. A porteira da escola, gorda, com cara de toupeira, sorria, na boutique ao lado uma senhora alta e ruiva acariciava com as longas unhas vermelhas um frasco estreito de perfume: Que tes… me dás. Onde é que vocês querem ir almoçar? Ao Pónei. À Tasca. Mas a senhora ruiva veio à porta e a ternura dissolveu-se-lhe num ápice no furioso desejo daquele rosto de louça, da saia travada que aprisionava o leque de carne espessa das coxas. Através dos anos o colega de carteira do liceu sussurrou-lhe ao ouvido: É o que elas querem, pá: agarras-te ao colchão, apertas os dentes, e é para trás e para a frente, para trás e para a frente, percebes, até os quadros se virem na parede.

Devem estar enormes, afirmou a prima do fundo da cadeira, a retirar o tricot de um saco de plástico. A respiração da mãe tornara-se um assobio difícil, baixo, imperceptível. As falanges, azuis, moviam-se devagar no cobertor em reptações de insecto. Vou esta tarde para Tomar, mãe, ao congresso, volto no domingo à hora do jantar. Livre-se de se apaixonar pelo indiano manhoso do médico nestes três dias: não quero vacas sagradas na família. Que falta de humor, catano, nem uma piada de jeito te sai, recriminou-se ele, graças pesadas como os pingos de chumbo das banheiras da insónia, parvoíces tolas de revista: preciso urgentemente de me reciclar no Charlie Hebdo. A prima espalhava cuidadosamente os novelos no colo: São tão simpáticos, os indianos, tão delicados. Ó Fernanda, reparaste no bigode dele? Imensas metástases pulmonares, informou o doutor, um derrame monstro na pleura. (Parecia referir-se às anginas de um esquimó que nenhum deles conhecia.) O melhor é irem-se preparando para o que der e vier.

Mostrava radiografias, exibia análises, fornecia explicações pomposas. A perfeição do nó da gravata irritava-me ao rubro: desabotoar-lhe o colarinho com um puxão, amarrotar o excessivo cuidado da camisa: a minha mãe vai morrer e este cabr… nas tintas. Os olhos verdes fitavam-no impiedosamente da almofada. Já saiu o teu manual?, soprou ela a custo». In António Lobo Antunes, Explicação dos Pássaros, 1981, Publicações Dom Quixote, 1983, ISBN 978-972-205-020-3.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT

JDACT, António Lobo Antunes, Literatura, A Arte,