«(…) Era um homem novo, talvez cinco anos mais velho do que eu, vestido com roupa de trabalho grosseira e usando luvas de couro que pareciam estranhamente medievais e descabidas. Não quis assustá-la, desculpou-se ele. Só pensei que, se anda à procura do Eddie, ele não está. Ele estava agora bastante próximo, o suficiente para eu ver claramente a combinação de cabelo arruivado e olhos cinzentos que é, não sei porquê, distintamente escocesa. Ele sorriu, um sorriso amistoso que condizia com a voz. É amiga do Eddie?, perguntou. Sacudi negativamente a cabeça. Familiar então? Não. Corei um pouco, o que só me ficou bem. Tive o palpite de que os meus falsos problemas com o carro não iam convencer o dono daqueles perspicazes olhos cinzentos. Não, não conheço o proprietário. Sabe se ele vai voltar em breve? O homem inclinou a cabeça de lado e brindou-me com um demorado olhar de avaliação que me recordou o meu irmão. Espero que não, disse ele sem emoção. Foi a enterrar no mês passado. Ah, lamento. Corei ainda mais. Lamento muito. Não há problema. Encolheu os ombros. Estava a dar uma espreitadela? Por esta altura, já a minha cara estava escarlate, e tive a sensação de que ele estava a divertir-se com o meu evidente desconforto. Levei um momento, mas por fim registei o pleno significado do que ele acabara de me dizer e subitamente esqueci o meu embaraço. Levantei imediatamente os olhos. A casa está então à venda? Está. Quer dar uma vista de olhos? Quero comprá-la. Esperei vinte e cinco anos por esta casa. O homem ergueu uma sobrancelha ruiva e, por qualquer razão absurda, dei por mim a desbobinar toda a história de A Casa e Eu, que ele ouviu com admirável paciência. Não me parece que a tenha achado muito interessante. Quando cheguei ao fim da minha pueril narrativa, os seus olhos calmos fitaram os meus pela segunda vez e a parecença com o meu irmão tornou-se ainda mais acentuada. Bem, nesse caso, disse ele solenemente, o melhor é ir falar com mr. Ridley em High Street.
Não trouxe comigo a chave, senão
eu próprio lhe mostrava a casa. Descalçou uma luva e estendeu-me a mão. A propósito,
chamo-me Iain Sumner. Julia Beckett. A minha expressão à vista da mão dele deve
ter-se alterado porque ele voltou a sorrir, baixando os olhos para as pequenas
lacerações que lhe marcavam a pele. Silvas, explicou. Devoravam-me o jardim se
não as desbastasse. Não é doloroso, garantiu, voltando a calçar a luva. Tenho
de voltar ao trabalho. Boa sorte com a casa. Obrigada, disse eu, mas ele já ia
longe para me ouvir. Cinco minutos depois, estava sentada no escritório de
Ridley & Stewart, agentes imobiliários. Confesso que não recordo muito bem
essa tarde. Lembro-me, sim, de uma torrente confusa de conversa, em que mr.
Ridley discorreu sobre questões legais, documentos de transferência de titularidade,
buscas e coisas do género, mas no fundo eu não estava a ouvir. Tem a certeza,
tinha-me perguntado mr. Ridley, de que não deseja ver primeiro a propriedade? Já
a vi, afiancei-lhe. Para ser franca, achava essas formalidades desnecessárias.
Afinal de contas, era a minha casa. A minha casa. Ainda estava presa a essa
certeza, como uma criança que não larga uma prenda, quando bati à porta do
presbitério de St. Stephen, em Elderwel, Hampshire, nessa noite. Felicita-me,
vigário. Sorri radiosamente ao rosto espantado do meu irmão. Somos praticamente
vizinhos. Acabo de comprar uma casa no Wiltshire.
Para
onde é que esta vai, menina? O jovem assistente louro da empresa de mudanças
levantou uma cadeira estofada tão facilmente como se fosse um brinquedo e parou
no corredor à espera de instruções. Eu estava atarefada a vasculhar num dos
caixotes bem embalados, tentando encontrar o meu velho e fiel bule do chá antes
de a chaleira que tinha posto ao lume começar a ferver. Olhei por cima do ombro,
distraída. No meu quarto, respondi. Primeira porta à direita no cimo das
escadas. Ah! A minha mão fechou-se sobre a forma familiar da asa do bule no
mesmo instante em que a chaleira anunciou que a água estava a ferver com um
assobio penetrante. Desligando o bico do gás, deitei folhas de chá no bule,
enchi-o de água e pousei-o na parte de trás do fogão para abrir. Miss Beckett? Era
mr. Owen, o responsável da empresa de mudanças, à porta das traseiras com outro
assistente atrás. A sua alegre cara redonda estava rosada com o esforço. Temos
aqui a mesa da cozinha. Achámos melhor trazê-la pelas traseiras…, não quero
estragar os painéis de madeira da entrada. Fiz-lhes o jeito de sair do caminho,
arrastando um ou dois caixotes atrás de mim. Acabo de fazer chá, disse eu, se o
senhor e os seus homens quiserem uma chávena. Ah. Olhei à minha volta,
lembrando-me de repente de que ainda não tinha desembalado as chávenas. Não se
preocupe, menina. Mr. Owen piscou o olho afavelmente. Eu tenho uma caixa de
copos descartáveis no camião. Venho sempre preparado. O jovem assistente louro
apareceu novamente, com um ar perplexo. Tem a certeza de que quer dizer a primeira porta à direita,
menina? Não me parece que seja um quarto…, é incrivelmente pequeno e tem lá
dentro um cavalete ou coisa parecida. Bati com a mão na testa e sorri em jeito
de desculpa. Peço desculpa, queria dizer a terceira porta à direita. O quarto grande do lado
norte da casa». In Susanna Kearsley, Mariana, 1994, Edições ASA, 2013, ISBN
978-989-232-168-4.
Cortesia sde EASA/JDACT
JDACT, Narrativa, Literatura, Susanna Kearsley,