domingo, 29 de agosto de 2021

A Biblioteca Perdida do Alquimista. Marcello Simoni. «Airagne!, tentou gritar, lutando contra a sensação de asfixia que lhe apertava a garganta. Sentiu junto de si aquela criatura monstruosa quando o terror o invadiu e seu coração parou de bater»

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«(…) Seu nome é Jaloque, derivado do árabe šaláwq, vento do mar. Ganhei-o do califa al-Mamun, senhor do Magrebe, em troca de alguns tratados astrológicos. Os arqueiros berberes cavalgam em animais dessa mesma raça... Agora é seu. O jovem se inclinou, agradecendo, e aproximou-se do cavalo. Acariciou-lhe o focinho e o pescoço e só então notou que havia um arco de caça preso ao arção posterior. Mera precaução, explicou Galib, entregando-lhe uma aljava. Poderá ser útil. Uberto concordou com um aceno de cabeça. Prendeu a aljava ao flanco direito, pôs um pé no estribo e alçou-se à sela. O corcel bateu com as patas no chão por alguns instantes, depois ergueu a cabeça e bufou. As esporas são desnecessárias, hein, Jaloque?, sussurrou o jovem ao ouvido do animal, acariciando-lhe a crina. Parece mesmo impaciente para galopar. Galib, novamente sério, tirou um rolo da manga esquerda da batina e estendeu-o com certa pressa a Uberto. Entregue esta carta a Raymond Péreille quando chegar ao rochedo de Montségur. Por meio dela, peço-lhe que o ponha a par das informações de que dispõe sobre o conde de Nigredo e lhe dê uma cópia de um raro manuscrito de alquimia que possui: o Turba Philosophorum . Acho que poderá ser de muita utilidade a você e seu pai, para que se inteirem das manobras do inimigo. E vá tranquilo, o senhor de Péreille me conhece há bastante tempo. Não deixará de ajudá-lo. Farei isso, magister. Óptimo, filho. Agora escute: quando sair do castelo, não se dirija à porta principal da muralha, mas sim ao lado oposto. Siga a muralha até uma pequena cancela, onde o esperam dois guardas com quem fiz um acordo. Deu-lhe uma bolsa recheada de moedas. Entregue-lhes isto e o deixarão passar sem problemas. Uberto pegou a bolsa, sopesou-a e prendeu-a ao cinto, junto com a jambiya. Diga a meu pai que me espere em Toulouse, pediu o jovem. E, esporeando o cavalo, saiu a trote da estrebaria. O velho observou-o afastar-se, enquanto uma dor repentina no peito obrigava-o a ajoelhar-se no chão. Lembre-se, gritou apertando nervosamente um tufo de palha entre os dedos, lembre-se do Turba Philosophorum! Uberto, já distante, fez sinal de que entendera sem virar-se na sela. A silhueta do jovem cavaleiro, cada vez mais longínqua, desapareceu na noite.

Enquanto se esforçava para voltar a seu quarto, Galib concluiu que não teria mais muito tempo de vida. Um veneno misterioso devastava-lhe o corpo. Talvez o houvesse ingerido na ceia, misturado à sopa de centeio ou ao refresco de groselha. Ou lhe tivesse sido ministrado depois, durante o sono, antes do encontro secreto com Uberto. Fosse como fosse, a maldita substância começava a turvar sua percepção da realidade. A luz das tochas emergia das sombras com estranha intensidade, alongando-se pelo chão como rastros de caracol. O cheiro de resina e salitre chegava-lhe às narinas amplificado e nauseante; a vertigem impedia-o de continuar andando e a falta de ar aumentava a cada passo. Por isso apressara tanto Uberto, correndo o risco de parecer grosseiro e mesmo suspeito. Cerca de uma hora antes, notara os sintomas da intoxicação e sua experiência na matéria o induzira logo a atribuí-los ao envenenamento. Fora obrigado a agir enquanto estava ainda lúcido. E ele o fez. Tinha conseguido encaminhar o rapaz. Agora só lhe restava chegar ao seu alojamento e consultar algum livro para descobrir o antídoto apropriado, embora isso lhe parecesse um esforço quase inútil. Antes, porém, devia encontrar uma maneira de informar Ignazio das suas suspeitas.

A estrada que levava ao torreão parecia interminável, um calor opressivo no rosto e no peito forçava-o a parar a todo instante para recuperar o fôlego. De súbito, numa dessas pausas, viu-se diante de uma figura envolta numa capa preta. O encontro foi tão inesperado que o velho recuou um passo, arriscando-se a cair. Quem é você?, perguntou num primeiro impulso, mas logo emendou: Ah, eu o conheço... Muito bem, replicou o encapuzado. Assim ficará mais à vontade para me revelar aonde enviou o rapaz com tanta urgência. Maldito... O velho levou a mão ao peito. Então foi você quem me envenenou... É muito perspicaz, magister. Lê nas pessoas quase tão bem quanto nos livros. A figura avançou lentamente. E por falar em livros, deve imaginar o que estou procurando. Diga-me então onde está o Turba Philosophorum. Galib recuou mais um passo. Não lhe direi nada. Paciência, suspirou o encapuzado. Quer saber de uma coisa? A dose de veneno que lhe dei não seria mortal para um homem saudável, mas você está decrépito. Será talvez questão de minutos... Ao que parece, já tem dificuldade para respirar. O magister cambaleou, mas fez um esforço e se apoiou a uma parede. Foi então que, num último lampejo de lucidez, viu algo cintilar no pescoço do homem da capa: um pingente dourado com a forma de um insecto de oito patas. O símbolo de Airagne!, exclamou aterrorizado. Aquele lugar maldito... Sim, o castelo de Airagne, confirmou a sombra em tom ameaçador. Airagne, a morada do conde de Nigredo... Pois bem, mas agora você..., sabe muitas coisas, ou melhor, coisas demais. O encapuzado se aproximou. O velho, agora tomado pelo delírio, não viu uma figura humana avançar ao seu encontro, mas oito patas compridas e finas, providas de olhos bulbosos, que luziam na treva.

Airagne!, tentou gritar, lutando contra a sensação de asfixia que lhe apertava a garganta. Sentiu junto de si aquela criatura monstruosa quando o terror o invadiu e seu coração parou de bater». In Marcello Simoni, A Biblioteca Perdida do Alquimista, 2012, tradução de Maria Irene Carvalho, Clube do Autor, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-724-089-8.

Cortesia de CAutor/JDACT

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