Prazer e dor na Ciência dos Conhecimentos
Dar
a Palavra aos Sentimentos
«Os
sentimentos de dor ou prazer são os alicerces da mente. É fácil não dar conta
dessa simples realidade porque as imagens dos objectos e dos acontecimentos que
nos rodeiam, bem como as imagens das palavras e frases que os descrevem, ocupam
toda a nossa modesta atenção, ou quase toda. Mas é assim. Os sentimentos de
prazer ou de dor ou de toda e qualquer qualidade entre dor e prazer, os
sentimentos de toda e qualquer emoção, ou dos diversos estados que se
relacionam com uma emoção qualquer, são a mais universal das melodias, uma
canção que só descansa quando chega o sono, e que se torna um verdadeiro hino
quando a alegria nos ocupa, ou se desfaz em lúgubre réquiem quando a tristeza
nos invade. Dada a ubiquidade dos sentimentos, seria fácil pensar que a sua
ciência estaria já há muito elucidada. Mas não está. Dentre todos os fenômenos
mentais que podemos descrever, os sentimentos e os seus ingredientes essenciais
a dor e o prazer são de longe os menos compreendidos no que diz respeito à sua
biologia e em particular à neurobiologia. Isso é especialmente surpreendente
quando pensamos que as sociedades avançadas cultivam os sentimentos da forma
mais despudorada e manipulam os sentimentos com álcool ou drogas ilícitas,
medicamentos, boa e má alimentação, sexo real e virtual, toda espécie de
consumos e práticas sociais e religiosas cuja única finalidade é o bem-estar.
Tratamos dos nossos sentimentos com comprimidos, bebidas, exercícios físicos e
espirituais, mas nem o público nem a ciência fazem uma ideia clara do que são
os sentimentos do ponto de vista biológico.
Não
posso me declarar inteiramente surpreso com esse estado de coisas dadas as
estranhas ideias com que cresci no que diz respeito aos sentimentos. Por
exemplo, costumava pensar que os sentimentos não podiam se definir de forma
específica, ao contrário dos objectos que se veem, que se ouvem ou em que se
pode tocar. Ao contrário dessas entidades concretas, os sentimentos eram
intangíveis. Quando comecei a pensar na forma como o cérebro criava a mente,
aceitei sem protesto a ideia de que os sentimentos não cabiam em nenhum
programa científico. Podíamos estudar a forma como o cérebro nos movimenta.
Podíamos estudar processos sensitivos, tais como a visão, e compreender como se
organiza o pensamento. Podíamos até estudar as reações emocionais com as quais
respondemos a diversos objetos e situações. Mas os sentimentos que, como
veremos no próximo capítulo, podem ser distinguidos das emoções continuavam
fora do nosso alcance, para sempre misteriosos e inacessíveis. Não era possível
explicar como aconteciam os sentimentos e, menos ainda, o local onde
aconteciam.
Como
era o caso com a consciência, os sentimentos existiam fora das portas da
ciência, aí mantidos cuidadosamente não só por uma certa filosofia empenhada em
negar qualquer explicação neurocientífica para os fenómenos mentais, mas também
por neurocientistas diplomados que lhes negavam a entrada. A prova de que tomei
a sério essas diversas limitações é o facto de que durante muitos anos evitei
qualquer projecto que dissesse respeito aos sentimentos. Levei muito tempo para
descobrir que os obstáculos postos à ciência dos sentimentos não tinham
cabimento e que a neurologia dos sentimentos não era menos viável do que a da
visão ou a da memória. Mas a realidade de certos doentes neurológicos
forçou-me, ao fim e ao cabo, a rever a minha posição». In António Damásio, Em Busca de
Espinosa, Prazer e dor na Ciência dos Conhecimentos, Companhia das Letras,
2004, ISBN 978-853-590-490-1.
Cortesia de CdasLetras/JDACT
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