segunda-feira, 23 de outubro de 2023

Em Busca de Espinosa. António Damásio. «Passo a passo, primeiro em doentes e depois tanto em doentes como em pessoas sem doença neurológica, começamos a mapear a geografia do cérebro que sente»

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Prazer e dor na Ciência dos Conhecimentos

Dar a Palavra aos Sentimentos

«Imaginem, por exemplo, encontrar alguém a quem uma certa lesão cerebral tornou incapaz de sentir vergonha ou compaixão, mas em nada alterou a capacidade de sentir tristeza, felicidade ou medo. Imaginem uma pessoa a quem uma lesão de outra região cerebral tornou incapaz de sentir medo, mas não interferia com a capacidade de sentir compaixão ou vergonha. A crueldade da doença neurológica é um poço sem fundo para as suas vítimas os doentes, bem como os médicos que os observam e tratam. Mas a doença neurológica também tem qualquer coisa de redenção: a doença funciona como um bisturi que separa o cérebro normal do cérebro doente com espantosa precisão e que assim permite uma rara porta de entrada na fortaleza do cérebro e mente.

A reflexão sobre a situação desses doentes e de outros com problemas comparáveis levou-me à construção de diversas hipóteses. Primeiro, era óbvio que certas espécies de sentimentos podiam ser bloqueadas pela lesão de um sector cerebral discreto; a perda de um sector cerebral específico implicava a perda de uma classe específica de fenômeno mental. Segundo, era também óbvio que sistemas cerebrais diferentes controlavam diferentes espécies de sentimentos; a lesão de uma certa região anatómica cerebral não causava a perda de todas as formas possíveis de sentimento. Terceiro, quando os doentes perdiam a capacidade de exprimir uma certa emoção também perdiam a capacidade de ter o correspondente sentimento. De forma surpreendente, contudo, alguns doentes incapazes de ter certos sentimentos eram ainda capazes de exprimir as emoções que lhes correspondem ou seja, era possível exibir uma expressão de medo mas não sentir medo.

A emoção e o sentimento eram irmãos gémeos, mas tudo indicava que a emoção tinha nascido primeiro, seguida pelo sentimento, e que o sentimento se seguia sempre à emoção como uma sombra. Apesar da intimidade e aparente simultaneidade, tudo indicava que a emoção precedia o sentimento. Entrever essa relação específica permitiu, como iremos ver, uma perspectiva privilegiada na investigação dos sentimentos. Essas hipóteses podiam ser testadas com a ajuda de técnicas de neuroimagem que permitem a criação de imagens da anatomia e actividade do cérebro humano.

Passo a passo, primeiro em doentes e depois tanto em doentes como em pessoas sem doença neurológica, começamos a mapear a geografia do cérebro que sente. A meta era elucidar a teia de mecanismos que permitem aos nossos pensamentos desencadear estados  emocionais e construir sentimentos». In António Damásio, Em Busca de Espinosa, Prazer e dor na Ciência dos Conhecimentos, Companhia das Letras, 2004, ISBN 978-853-590-490-1.

Cortesia de CdasLetras/JDACT

JDACT, António Damásio, Ciência, Espinosa, Filosofia, Conhecimento,