Cortesia de Temas e Debates
Com a devida vénia a João Oliveira e Costa, publico algumas palavras do seu livro «O Império dos Pardais».
« ... A roda da fortuna dera voltas e mais voltas, alterando-lhes os planos assim que os arquitectavam. Como poderiam :adivinhar, no final de 1482, as tragédias por que passaria a corte portuguesa durante todo o reinado de D. João II. Primeiro a prisão e decapitação de D. Fernando, duque de Bragança, com a fuga do reino de d: João, marquês de Montemor. D. Afonso, conde de Faro, e D. Álvaro, chanceler-mor do reino, todos irmãos do duque executado. D. João e D. Afonso haviam falecido pouco depois no exílio castelhano.
Quem adivinharia também que a rainha D. Leonor não voltaria a dar à luz, a não ser um nado-morto. D. Manuel acompanhava os reis numa peregrinação a Lamego, mas não houvera santo que intercedesse com sucesso junto do Altíssimo, e a descendência legítima de D. João II ficara reduzida ao príncipe D. Afonso.
Entretanto, e rn 1484, seguira-se o assassínio do duque de Viseu pelo próprio rei, sob o pretexto que D. Diogo planeara o regicídio. O altivo D. Diogo acabara sem g1ória, apunhalado pelo cunhado que ele desdenhara e subestimara. D. Manuel fora chamado à câmara onde jazia, inerte, seu irmão, e, ali mesmo, defronte do cadáver, lhe fora prometido o ducado de Viseu, mas com sede em Beja, mais o governo da Ordem de Cristo, o senhorio das ilhas atlânticas e o título de condestável. De repente, o último neto d’el-rei D. Duarte, a quem D. João II continuara a negar o governo da Ordem de Avis, transformava-se no fidalgo mais poderoso do reino.
Passado um mês, ainda atordoado, D. Manuel chamara os amigos da Irmandade de Moura. Continuavam a ser uns rapazes, mas os laços de amizade estavam firmados. Juntos haviam renovado os votos de uma união total e nos meses seguintes todos acabaram por ser incorporados na Casa de Beja. A sua relação informal permanecera secreta, e nem Miguel de Castro a revelara no seu diário.
Insatisfeita com tamanha revolução, a roda da fortuna levara D. Manuel a Elvas para receber D. Isabel de Castela, aquela menina que outrora espreitara por entre as ameias do Castelo de Moura, que agora chegava, mulher, para desposar o príncipe D. Afonso.
O duque de Beja conduzira a prima para o enlace com seu sobrinho, e ao revê-la voltara a não ficar indiferente, mas quem era capaz de escapar às desconfianças do rei sabia dissimular o interesse por uma mulher. A Irmandade de Moura acompanhara D. Manuel nos festejos grandiosos com que D. João II celebrara o casamento de seu único filho.
Passados oito meses, a princesa continuava por engravidar e o príncipe caíra do cavalo desastradamente. Numa tarde de Julho do ano de 1491, o trono escancarava-se ao afortunado, mas discreto duque de Beja, que de Tomar acorrera a Santarém, onde encontrara o príncipe já cadáver. Para que a tragédia d'el-rei João fosse completa faltava sua própria morte, que também não tardara. Mas esta não surgira subitamente, como no dia em que levara o príncipe; ao rei a morte anunciara-se com larga antecedência. A doença fora-lhe corroendo o corpo enquanto o espírito vivo do monarca continuava a montar as bases que haviam de sustentar o império marítimo dos portugueses, mas que ele já não veria. D. João tentara, ao mesmo tempo, fazer de D. Jorge, seu filho bastardo, o herdeiro do trono, mas as forças vivas da Casa de Beja, mantendo sempre o duque resguardado da sanha joanina, tinham defendido a realeza de D. Manuel, de novo herdeiro, mas agora da Coroa. A Irmandade de Moura tivera parte activa nesse processo. Vasco de Melo, que se especializara em acções secretas, andara por Itália durante dois anos a coordenar todas as acções para neutralizar as embaixadas de D. João II ao papa.
D. Manuel tornara-se rei de Portugal, a 25 de Outubro de 1495, num ambiente tenso, tendo recusado uma derradeira visita ao rei moribundo por receio de sofrer um atentado. Os amigos de infância acompanhavam-no em Alcácer do Sal quando chegara a nova que lhe dava o ceptro. Todos se maravilharam com tal destino, que elevara à realeza o jovem nascido longe do trono, mas que fora baptizado como Emanuel - «o Deus connosco», sinal de que era um predestinado.
Pouco depois chegara a embaixada castelhano-aragonesa propondo-lhe. o casamento com a infanta D' Maria, fi1ha dos Reis Católicos. D. Manuel desejava tornar-se genro de Fernando e Isabel, mas a noiva pretendida era a velha conhecida D. Ìsabel, que continuava viúva. O desejo fora satisfeito, mas o preço elevado, pois D. Isabel impusera a saída de judeus e mouros para que ela regressasse a terras de Portugal. D. Manuel, com manhas, transformara os seguidores de Moisés em cristãos-novos e, nesses tempos em que a intolerância para com os judeus ganha contornos mais acentuados, limitara-se a evitar um problema criando outro bem mais complexo. Viera D. Isabel e passado um mês já estava prenhe enquanto seu irmão mais velho morria em Castela e o filho que ele engendrara em Margarida de Áustria morria, pouco depois, à nascença.
Desta forma, a Isabel que D. Manuel cobiçara em Moura, valia-1he, passados quinze anos, a herança de Castela e Aragão. Depois, porém, a roda da fortuna mudara de sentido e matara Isabel no parto e o pequeno rebento, o príncipe D. Miguel da Paz, passados dois anos. Embora tivesse de abandonar por então o sonho hispânico, D. Manuel ganhara um império e uma nova esposa, D. Maria, que ele amava e que o cumulalava de filhos.
Em muitos momentos decisivos de sua vida, enquanto duque ou já corno rei, seus amigos da irmandade tinham-lhe valido, fosse na praça pública, fosse em acções discretas, matéria em que alguns deles se haviam tornado especialistas». In João Oliveira e Costa, O Império dos Pardais, editora Temas e Debates, 1ª edição, janeiro de 2008, pág. 103-105, ISBN 978-972-759-993-6.
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