segunda-feira, 5 de julho de 2010

Mário de Sá-Carneiro: Considerado um dos maiores expoentes da literatura moderna em língua portuguesa. A sua genialidade é tão grande, mas porém muito mais próxima da loucura que a de Fernando Pessoa. Uma poesia impregnada de uma humanidade autêntica, triste e trágica

(1890-1916)
Lisboa
Cortesia de theatrodepalavras
Mário de Sá Carneiro foi um poeta, contista e ficcionista, um dos grandes expoentes do Modernismo em Portugal e um dos mais reputados membros da Geração d’Orpheu.
Nasceu no seio de uma abastada família alto-burguesa, sendo filho e neto de militares. Órfão de mãe com apenas dois anos (1892), ficou entregue ao cuidado dos avós, indo viver para a Quinta da Vitória, na freguesia de Camarate, às portas de Lisboa, aí passando grande parte da infância.

Em 1911, com dezenove anos, vai para Coimbra, onde se matricula na Faculdade de Direito, mas não conclui sequer o ano. Aí, contudo, viria a conhecer aquele que foi, sem dúvida, o seu melhor e mais compreensivo amigo, Fernando Pessoa, o qual, em 1912, o introduziu no ciclo dos modernistas.
Desiludido com a «cidade do conhecimento», segue para Paris a fim de prosseguir os estudos superiores, com o auxílio financeiro do pai. Cedo, porém, deixou de frequentar as aulas na Sorbonne, dedicando-se a uma vida boémia, deambulando pelos cafés e salas de espectáculo, chegando a passar fome e debatendo-se com os seus desesperos, situação que culminou na ligação emocional a uma prostituta, a fim de combater as suas frustrações e desesperos.
Cortesia de escamoes
Inadaptado socialmente e psicologicamente instável, foi neste ambiente que compôs grande parte da sua obra poética e a correspondência com o seu confidente Fernando Pessoa. Entre 1912 e 1916 (o ano da sua morte), é o período que se inscreve a sua fugaz, e no entanto assaz profícua, carreira literária.
Entre 1913 e 1914 vem a Lisboa com certa regularidade, regressando à capital devido à deflagração do conflito entre a Sérvia e a Áustria-Hungria, o qual a breve trecho se tornou uma conflagração à escala europeia. A I Guerra Mundial. Com Pessoa e ainda Almada-Negreiros integrou o primeiro grupo modernista português (o qual, influenciado pelo cosmopolitismo e pelas vanguardas culturais europeias, pretendia escandalizar a sociedade burguesa e urbana da época), sendo responsável pela edição da revista literária Orpheu, que por isso mesmo ficou sendo conhecido como a Geração d’Orpheu ou Grupo d’Orpheu, um verdadeiro escândalo literário à época, motivo pelo qual apenas saíram dois números, Março e Junho de 1915. O terceiro, embora impresso, não foi publicado, tendo os seus autores sido alvo da chacota social, ainda que hoje seja, reconhecidamente, um dos marcos da história da literatura portuguesa, responsável pela agitação do meio cultural português, bem como pela introdução do modernismo em Portugal. Em Julho de 1915 regressa a Paris, escrevendo a Pessoa cartas de uma crescente angústia, das quais ressalta não apenas a imagem lancinante de um homem perdido no «labirinto de si próprio», mas também a evolução e maturidade do processo de escrita de Sá-Carneiro.

Uma vez que a vida que trazia não lhe agradava, e aquela que idealizava tardava em se concretizar, Sá-Carneiro entrou numa maior angústia, que viria a conduzi-lo ao seu suicídio prematuro, perpetrado no Hotel de Nice, no bairro de Montmartre em Paris.

Morreu aos 26 anos de idade.
Extravagante tanto na morte como em vida, de que o poema Fim é um dos mais belos exemplos, convidou para presenciar a sua agonia o seu amigo José de Araújo. E apesar de o grupo modernista português ter perdido um dos seus mais significativos colaboradores, nem por isso o entusiasmo dos restantes membros esmoreceu – no segundo número da revista Athena, Pessoa dedicou-lhe um belo texto, apelidando-o de «génio não só da arte como da inovação dela», e dizendo dele, retomando um aforismo das Báquides (IV, 7, 18), de Plauto, que «Morre jovem o que os Deuses amam», tradução literal de Quem di diligunt adulescens moritur.

Com efeito, reconhecido no seu tempo apenas por uma fina élite, à medida que a sua obra e correspondência foi publicada, ao longo dos anos, tornou-se acessível ao grande público, sendo actualmente considerado um dos maiores expoentes da literatura moderna em língua portuguesa. Embora não tenha a mesma repercussão de Fernando Pessoa, a sua genialidade é tão grande (senão mesmo maior) que a de Pessoa, mas porém muito mais próxima da loucura que a do seu amigo.
O seu poema Fim foi musicado por um grupo português no final dos anos 1980, os «Trovante». Mais tarde, o seu poema O Outro foi também musicado pela cantora brasileira «Adriana Calcanhotto».

Na fase inicial da sua obra, Mário de Sá-Carneiro revela influências de várias correntes literárias, como o decadentismo, o simbolismo, ou o saudosismo, então em franco declínio. Posteriormente, por influência de Pessoa, viria a aderir a correntes de vanguarda, como o interseccionismo, o paulismo ou o futurismo.

Exprime com vontade a sua personalidade, sendo notória a confusão dos sentidos, o delírio, quase a raiar a alucinação. Ao mesmo tempo, revela um certo narcisismo e egolatria, ao procurar exprimir o seu inconsciente e a dispersão que sentia do seu «eu» no mundo – revelando a mais profunda incapacidade de se assumir como adulto consistente.
Embora não se afaste da metrificação tradicional (redondilhas, decassílabos, alexandrinos), torna-se singular a sua escrita pelos seus «ataques à gramática», e pelos «jogos de palavras». Se numa primeira fase se nota ainda esse estilo clássico, numa segunda, claramente niilista, a sua poesia fica impregnada de uma humanidade autêntica, triste e trágica.
Cortesia de catedral
Publicada em 1912, Amizade, é a primeira peça que escreve. Mário de Sá-Carneiro divide a autoria desta obra com Tomás Cabreira Júnior. O facto de hoje podermos ler esta peça deve-se a um acaso. Dos dois colegas e autores da peça Amizade, Tomás Cabreira Júnior era o único dos dois que tinha os manuscritos. Por qualquer motivo desconhecido, era Sá-Carneiro quem os tinha consigo aquando do suicídio de Tomás Cabreira Júnior, que antes de efectuar tão estranho acto,  destruiu toda a sua obra.
  • No ano de 1912, o autor dá à estampa um conjunto de novelas que reune sob o título Princípio;
  • A Confissão de Lúcio (1913).
Inaugurando um estilo até então em si desconhecido, o romance, Mário de Sá-Carneiro publica, em 1913, A Confissão de Lúcio. A temática desta obra gira em torno do fantástico e é um óptimo espelho da época de vanguarda que foi o modernismo português. O ano de 1913 veio a revelar-se de uma pujança criativa inigualável. Não só variou dentro da prosa, como apresenta ao público a sua primeira obra de poesia:
  • Dispersão. Esta obra é composta por doze poemas e a sua primeira edição foi revista quer pelo autor quer pelo seu grande amigo, e também poeta, Fernando Pessoa;
  • Céu em Fogo (1915).
Nem tudo aquilo que Sá-Carneiro produziu em vida, viu ser publicado, ainda que muitas coisas, além dos seus livros, tenha deixado espalhadas pelas publicações em que participou, como as revistas Orpheu ou Portugal Futurista. Do que Mário de Sá-Carneiro não chegou a publicar em vida Indícios de Oiro, publicada em 1937 pela revista Presença, é o conjunto de trabalhos seus mais significativo do conjunto da sua obra.
A sua correspondência com outros membros do Orpheu foi também reunida em volumes póstumos:
  • Cartas a Fernando Pessoa (2 vols., 1958-1959);
  • Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Luís de Montalvor;
  • Cândia Ramos, Alfredo Guisado e José Pacheco (1977);
  • Correspondência Inédita de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa (1980).
É um dos nossos maiores poetas do Modernismo, talvez o que melhor exprime a cisão do sujeito na enunciação de si próprio e na formulação da sua percepção do mundo, ora deceptiva ao jeito simbolista-decadentista, ora inebriada pelas sensações e entusiasmos do futurismo.


A sua poética afasta-se de uma preocupação meramente formal da experiência literária, centrando nela embora o seu discurso, mas nela fundamentando as interrogações e a afirmação de anseios que dão sentido a uma existência que no entanto as não encontra. O poeta põe termo aos seus dias, suicidando-se em Paris.

Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto,
E hoje, quando me sinto,
É com saudades de mim.

Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida... (...)
Desceu-me n'alma o crepúsculo;
Eu fui alguém que passou.
Serei, mas já não me sou;
Não vivo, durmo o crepúsculo.
Mário de Sá-Carneiro, in Dispersão
Obras de Mário de Sá-Carneiro no Project Gutenberg USA



Cortesia do Instituto Camões/Biblioteca Nacional/Biblioteca Nacional Digital/JDACT