quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Diogo de Teive: O humanista do século XVI que escreveu toda a sua obra em Latim, foi historiador da gesta lusa, prosador, poeta inspirado, dramaturgo. Autor da «Tagédia do Príncipe João». Marcou a dramaturgia quinhentista em Portugal

Colégio de Santa Bárbara, Paris
Cortesia de enwikipedia

Com a devida vénia a Nair de Nazaré Soares, Universidade de Coimbra, publico algumas palavras do seu «brilhante» trabalho sobre Diogo de Teive e a dramaturgia quinhentista em Portugal.

O quinhentismo possuíu estudiosos como Diogo de Teive, que devem ser classificados como integrantes do Humanismo. A imitação greco-latina era superior ao elemento nacional e, deste modo, a sua característica era centrada na exaltação do Homem. António Ferreira, que fora seu discípulo, escreveu A Castro em vernáculo, isto é, imitou os clássicos antigos, mas não esqueceu o elemento nacional. Diogo de Teive  nunca escreveu em português, nem sequer no depoimento que fez na Inquisição.

Diogo de Teive, o humanista do século XVI que escreveu toda a sua obra em latim, foi historiador da gesta lusa, prosador, poeta inspirado, dramaturgo.

Colégio das Artes, Coimbra
Cortesia de
A sua vida (nascido em Braga no ano de 1513 ou 1514 e ainda era vivo em 1569), cheia de variedade e aventura, decorreu em vários centros culturais europeus, desde o Colégio de Santa Bárbara, em Paris, onde foi um dos bolseiros d’el Rey, à Universidade de Salamanca, Toulouse, Poitiers, Bordéus e outras paragens. Adquirida uma sólida formação humanística na Europa, nela se tornou prestigiado mestre de Retórica, sendo um dos «bordaleses» que vieram da Schola Aquitanica, do Colégio de Bordéus, com André de Gouveia fundar o Colégio das Artes, em Coimbra, em 1548.

No seu processo na Inquisição, Teive fala de si, desde os doze anos até à idade adulta, das cidades europeias onde estudou letras latinas e gregas e também leis, onde leccionou, e apresenta-se como uma pessoa «facil e conuersavel cõ todos e principalmẽte cõ homẽs de letras».

No apogeu do Humanismo Português, desde 1548, ensina no Colégio das Artes, em Coimbra, a Primeira classe de Retórica, onde teve alunos que honraram o seu magistério e que nas suas obras mostram a influência do mestre, como é o caso do apóstolo do Brasil, poeta e dramaturgo José de Anchieta, S. J. Em 10 de Setembro de 1555, o Colégio das Artes, devido à morte inesperada de André de Gouveia e à suspeição de heresia de alguns dos seus prestigiados mestres é entregue, pela mão do então Principal Diogo de Teive, aos Jesuítas, que teriam o monopólio da educação entre nós até ao tempo do Marquês de Pombal.

A Cleópatra de Sá de Miranda, a Ioannes Princeps Tragoedia – a Tragédia do Príncipe João  de Diogo de Teive. O português que percorrera os diversos centros intelectuais da Europa, onde adquirira uma dimensão de saber e mentalidade verdadeiramente humanistas, é autor, como Buchanan, seu colega e amigo, de duas tragédias bíblicas David e Judith.

Primeira e última páginas da defesa de Buchanan no processo da Inquisição
Cortesia de arlindocorreia
Não quer isto dizer que a história e a mitologia não continuassem a servir de inspiração aos poetas dramáticos quinhentistas, em latim e em língua vulgar, como o provam, entre nós, a desaparecida tragédia David, sobre o episódio de Golias que David abateu com a sua funda, foi levada à cena em Santa Cruz, no claustro da Portaria, em 16 de Março de 1550, por ocasião do bacharelato em Artes de D. António, filho do Infante D. Luís – irmão de D. João III.

Mais de um século havia decorrido e ainda se conservavam na memória os coros das moças de Israel, acompanhados de música suave, que saudavam o regresso do herói vitorioso: percussit Saul mille, et David decem millia «abateu Saul mil, e David dez mil». 

Ambas as tragédias bíblicas de Teive se perderam. Exercício de adestramento da língua latina, da retórica e da poética, decerto compôs Diogo de Teive estas tragédias para serem interpretadas pelos seus discípulos. À semelhança do que acontecia nos grandes centros intelectuais da Reforma, que contava com pedagogos como Johan Sturm e Philipe Melanchton, a temática bíblica era privilegiada, no teatro europeu e português. 

A obra dramática de Diogo de Teive, como toda a produção novilatina da época, é profundamente influenciada, na forma, na ideologia, na linguagem e na concepção trágica pelo teatro de Séneca, tão conhecido e divulgado. Nela dominam a análise psicológica, os monólogos, as confidências, a afirmação constante dos sentimentos dos protagonistas, que se revelam em plena maturidade desde o início, o que vai retardando a acção e lhe confere uma certa passividade de movimento dramático. Era o gosto, corrente na época, por um estilo empolado, cheio de retórica e sentenças morais, bem característico da obra do Cordovês, tão conhecido e divulgado.

Séneca
Cortesia de cmminhaterra
Todavia, a Tragédia do Príncipe João, apesar de ter Séneca como modelo, apresenta um certo número de aspectos que marcam a sua independência e definem a sua originalidade. A cultura literária e o próprio magistério docente de Diogo de Teive, que o mantinham em contacto permanente com as letras clássicas, permitiam-lhe utilizar os autores da Antiguidade de tal modo que os traços imitados se afiguram, por vezes, como puras reminiscências. É assim que se encontram disseminados por toda a obra passos de Virgílio, Horácio, Ovídio, dos poetas elegíacos, de Lucrécio. No entanto, muitos dos aspectos pertencentes à tradição clássica e nomeadamente senequiana, enquadram-se de tal modo na própria ideologia do Humanismo renascentista, que é difícil avaliar até que ponto Diogo de Teive teve intenção de imitar ou simplesmente procurou exprimir a mentalidade do tempo.

Tragediógrafo neolatino criativo e bom poeta, Diogo de Teive terá marcado de forma impressiva a dramaturgia quinhentista em Portugal, em latim e em vulgar

A ajuizarmos pelo acervo da tragédia jesuítica neolatina, não há dúvida de que, desde o iniciador do género, em Coimbra, o Padre Miguel Venegas, S. J, o teatro da Companhia de Jesus muito ficou a dever a Diogo de Teive, como o provam os estudos que lhe têm vindo a ser dedicados, recentemente. Considerada fonte da Castro, não só pela escolha do tema nacional, mas ainda no que se refere aos cânones estéticos e a certos traços temático-estruturais, a Tragédia do Príncipe João de Diogo de Teive adquire um peso singular, na história e na crítica literárias nacionais.
A Tragédia do Príncipe João, ao tomar por tema a morte do príncipe, único herdeiro do reino, ocorrida 18 dias antes do nascimento de seu filho, D. Sebastião, revela-nos, em toda a sua dimensão, um problema político actual, que abalou o país inteiro e comoveu todos os poetas, em língua latina e portuguesa.

CHORUS
Nós, ó deus Cupido, teus poderes,
Tuas chamas pelas quais não só o mar profundo
Incendeias, pelas quais ardes
O supremo Olimpo,
Pelas quais se abrasa a terra, cantemos brevemente.

Nada nasce nas terras e no vasto mar,
Nada nasce no luminoso éter, que não
Sinta tuas chamas.
Juntamente, este furor o sentem as maviosas aves,
No radiante teto do céu,
E vencidas, modulam seus cantos ardentes
Na voz melodiosa.

Este, as feras nos densos esconderijos do bosque;
Este, o selvagem javali, o leão, o touro, o urso;
Este, os mansos rebanhos, e ao mesmo tempo, pelo furor,
Uma turba excitada (de viventes).

Sentem, sob o espelho das ondas marinhas,
Os habitantes do vasto mar, cobertos de escamas douradas,
A tua divindade e retêm estas chamas
No profundo abismo (inundado).

Dessas vêm os nascimentos, elas ofertam os frutos (da vida);
Dessas, a terra bem cultivada, suas messes;
Dessas, as abelhas geram o mel gratificante,
Agitadas pelas tuas chamas.

Nenhum recanto têm o mar, a terra e o éter,
Por mais afastado que seja,
No qual o cetro supremo do Amor não se arme
Com seu arco poderoso.

Embora seja cego e jovem, certeiro
Aponta a seta e dilacera o peito
Com uma ferida dolorosa e não dá lenitivo
Ao amante queixoso.

Ele não poupa a Polifemo que apascenta
Seu rebanho pelos pastos; ele atormenta
O de clava invicta, apesar dos músculos robustos,
Nutridos por Júpiter.

Este, nem as raças prodigiosas (o) domaram:
Nem touros ferozes, nem o terrível leão de Neméia,
Nem os monstros de Lerna, (ou) o inexorável
Cérbero de tríplice mandíbula.

(Mas) o menino cego e delicado,
Força-o, vencido, levar ao pescoço
Um jugo ou um vitelo e ir entregue o fardo
(Agora suave) à amada senhora.

Se Cupido domina vencedor todos os corações
Inexpugnáveis, embora (tais corações) sejam gerados duros
E ferozes espinhos e pela truculência
Empedernida pelo ferro,
Por que não poderia domar o peito tenro
Das jovens e arder as mentes suaves dos jovens?

Aos que resistem, arrasta e os que os consentem
Conduz afavelmente.
De todos é vencedor o deus Cupido,
Porém, sabe dominar mais ainda os corações sensíveis
Das meninas e abrasar os dos jovens
Com chamas sedutoras.

Chamam-lhe alguns fúria e veneno,
Flagelo, peste, crime e desvario
Mil ditos ultrajantes lhe lançam
Com língua truculenta.
Entretanto, não sabem que dois Amores:

Um cego, furioso, cruel,
Que vence em ligeireza (os velozes) cervos,
Vence até os ventos;
Outro, casto, moderado, amigo,
Prudente, doce, plácido, sossegado,
a quem são gratas sempre a lealdade e a justiça,
Está ligado ao peito.

A este prestam culto desde tenra idade
Os piedosos Príncipes unidos a leitos de marfim,
Príncipes nossos: aos quais do supremo
Olimpo, Febo ou sua irmã nada vêem,
Nos recantos da terra, melhor ou maior do que eles,
Nada mais belo ou luminoso
Que alguma tenha nascido.

Ambos estão unidos por vínculos estreitos;
Uma e constante é a alma de um e de outro;
Uma só mente rege a ambos; uma
Vontade firme os liga.

Mas as coisas humanas são incertas nas suas ambigüidades
E inquietas não se mantém em lugar estável:
A este ardor pio e fé verdadeira
O destino se opõe.

A dura sorte costuma invejar
A prosperidade, não suporta o que dura muito no mundo
E revolve tudo
Com rápido movimento.

A devastação, a morte, a destruição, a ruína
Total cairão por terra e derrubará
Toda esta máquina, a não ser que em nosso socorro,
Ó Pai supremo, venhas.
Diogo de Teive, in Tragédia do Príncipe João

A dramaturgia quinhentista, de tema bíblico, mítico ou histórico define-se pelas marcas impressivas de um código poético comum,  quer a linguagem e a expressão poética se ajustem ao modelo do teatro neolatino, de marcada influência senequiana, quer informem o teatro em vulgar, que acolhe as novidades estético-formais dos dramaturgos italianos do Cinquecento. Já foram anotados os aspectos ideológicos que aproximam a Tragédia do Príncipe João e a Castro, por exemplo, no plano político, nomeadamente no que toca ao conceito de realeza e à caracterização do «leal servidor». A par dos aspectos ideológicos, os temático-estruturais, como o motivo do sonho, o papel da aia, o tema do amor e sua expressão, nas personagens principais e ao longo dos coros. Depois de verificar semelhanças de conteúdo, por vezes até literais, que ocorrem em ambas as tragédias, apesar dos aspectos fundamentalmente diversos que determinam a estrutura e o teor de cada uma delas, é possível falar de imitação, por parte de Ferreira, em relação à obra de Teive?

A resposta é quase totalmente positiva. Não se pode duvidar de que pelo menos tenha tido conhecimento dela, dado que muitas das coincidências encontradas são mais do que casuais. Apesar disso, se analisarmos em conjunto as linhas gerais que presidiram à elaboração de ambas as tragédias, notaremos as diferenças que neste particular podem apontar-se. Refiram-se, a título de exemplo, algumas das mais expressivas.
  • António Ferreira não tentou escrever a sua tragédia em latim: preferiu a língua vernácula, que sempre defendera. Nem se poderia esperar outra atitude do poeta que, na Carta a Pedro de Andrade Caminha, entoa um verdadeiro hino à língua portuguesa.
«Floreça, fale, cante, ouça-se, e viva
A Portuguesa língua, e já onde for
Senhora vá de si soberba, e altiva.
Se téqui esteve baixa, e sem louvor,
Culpa é dos que a mal exercitaram,
Esquecimento nosso e desamor»

O lirismo petrarquista, no seu jogo intelectivo de antíteses abstractas e assente numa estratégia da reduplicação do sujeito da enunciação em relação ao sujeito do enunciado, na valorização das capacidades perceptivas, em que avulta a prevalência da luz, do ver e do olhar, de inspiração plotino-ficiniana – que a Castro admiravelmente realiza – está já presente na Ioannes princeps, nas falas da princesa, grávida de D. Sebastião, e por isso afastada do seu príncipe, moribundo:
O care coniux, care plus quam lumina
quibus solebam te uidere, te ut iubar
conspicuum Olympi, qui potes per tot dies
abesse praesens? Aula cum te regia
haec teneat, oculos fugere tu meos potes?
conspectu abesse tandiu a meo potes?
Non id uoluntate, auguror, facis tua;
nec dubito ob oculos quin tuos semper meos
uidere cupias [...] (vv. 651-659).
Sed uos, uidere lumina infelicia
dum non potestis uestra clara lumina
iubarque uestrum iubare Phoebi clarius,
lugete semper ac perennes fundite
lacrimas (vv. 665-669).



Ou em tradução:



«Ó querido esposo! Querido mais do que os olhos com que eu costumava ver-te, a ti, brilhante como o resplendor do Olimpo! Como podes tu estar ausente – embora presente – durante tantos dias? Vivendo tu neste mesmo palácio, podes tu escapar à minha vista? podes há tanto tempo estar afastado do meu olhar? não é da tua vontade, eu o pressinto, nem duvido que os teus olhos desejem ver sempre os meus diante dos teus» [...]
«Mas vós, ó olhos infelizes, enquanto não podeis ver o vosso claro olhar e o vosso esplendor mais brilhante que o esplendor de Febo, chorai sempre e derramai lágrimas sem cessar.»
 
Cortesia de purl
A verdade é que os três poetas, Séneca, Diogo de Teive, António Ferreira, têm de comum o tratamento semelhante deste tema lírico, o poder cósmico do amor, e o emprego da estrofe sáfica. O recurso a este metro é, no entanto, mais uma prova irrefutável da influência formal do modelo dramático latino, na concepção da Castro.
Sem confundir o poder de imitação com génio criador, pode afirmar-se a importância do papel de Diogo de Teive na nossa dramaturgia quinhentista e mesmo na defesa da sua irrefutável originalidade. O teatro novilatino teiviano de tema bíblico foi suporte genológico da produção trágica quinhentista, designadamente do acervo dramático jesuítico, a que deu início o Padre Manuel Venegas, seguindo-se-lhe outros autores de renome, como o Padre Luís da Cruz.

A Ioannes Princeps tragoedia de Diogo de Teive, que canta um tema histórico nacional contemporâneo, serve de modelo à obra-prima da literatura portuguesa, a Castro de António Ferreira. A primeira edição, de 1587, prende-se mais estreitamente à lição do «mestre», decalcada, na estrutura e nos motivos e desenvolvimentos da intriga, no modelo dramático que priviligia a retórica, ao modo senequiano. A edição definitiva da Castro, de 1598, é a expressão acabada da individualidade poética e da veia trágica do seu autor através da reelaboração dos modelos, da depuração das fontes, onde Diogo de Teive tem um inegável quinhão.
 
Em suma, Diogo de Teive, amigo dilecto de António Ferreira e mestre de Jesuítas em Coimbra, foi marco indelével na orientação da tragédia quinhentista, que, no seu intrincado de relações estéticas e ideológicas, é bem a expressão do utile dulce, do aut.prodesse aut delectare horacianos (Arte Poética, vv. 343 e 333), ou melhor ainda, da depuração desse ideal, como preceituava a Poética do Estagirita, em realizações admiráveis de vida e poesia, de tradição e modernidade. 

Nair de Nazaré Soares
O meu Obrigado UC!
Cortesia da Universidade de Coimbra 
Cortesia de Nair de Nazaré Soares/Revista de Letras, Série II, nº 3/Universidade de Coimbra/JDACT