segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Gil Vicente. Líricas: Nelas não se esgota o ingénuo «veio» do saudável lirismo popular. Descobre-se na realidade sadia da vida honesta e produtiva dos campos

Cortesia de joraga

Com a devida vénia a João de Almeida Lucas, publico algumas palavras.

Gil Vicente, poeta lírico? Decerto o foi, e um dos mais altos expoentes nacionais do género. Esqueçamos que o lirismo é apenas a exteriorização dos estados de alma e dos sentimentos íntimos do Poeta, que mais não é do que uma poesia restritamente pessoal e subjectiva, que mais não interessa do que sentir pulsar o eu poético do artista.
Como para nos recordar que acima do dramaturgo e do vibrante satírico mais alguma coisa existe, voluteia uma aragem suave de encantador lirismo, que neutraliza a rudeza do dardo cruciante, que torna, ainda que mais não fosse, a ideação dramática mais colorida e viçosa.
Cortesia de virtualismoavbl
Há rasgos de prodigioso lirismo nas obras de Gil Vicente, o que leva a considerá-lo como um dos nossos «mais ricos» poetas líricos.
Em Gil Vicente, somos forçados a considerar 3 espécies de lirismo:
  • Objectivo, em que o espírito poético do autor reage perante os dados percebidos pelos sentidos;
  • Subjectivo ou Pessoal,  em que o poeta nos dá a imediata representação das suas manifestações psíquicas, em que exterioriza os seus sentimentos íntimos, próprios;
  • Objectivo-Subjectivo, em que o artista-comediógrafo analisando o tipo psíquico, nos dá a expressão dos sentimentos alheios, penetrando-os e imitando-os na sua psicologia própria, com maior ou menor argúcia e espírito de observação.
 Em face da Natureza, Gil Vicente é de uma receptividade assombrosa. O gosto naturalista das suas «tiradas» líricas é tal que consegue dar, no tablado, as cores mais adequadas e expressivas ao quadro campesino. A paisagem campestre «salta» aos nossos olhos e dá-nos como verdadeiro espírito do renascimento, provas do seu interesse permanente pelos problemas universais. E daí provém o encanto para o seu lirismo objectivo.
Del rosal vengo, mi madre,
vengo del rosale.
Afuera, afuera, nublados,
neblinas y ventisqueros!
Reverdeen los oteros,
los valles, priscos y prados.
Sea el frio rebentado,
salgan los frescos vapores,
píntese el campo de flores,
alégrese lo sembrado.

O símbolo naturalista foi «cultivado» pelo grande génio de quinhentos. 
Gil Vicente desvenda abertamente o seu eu, desaparece o grande lutador para dar lugar a uma imagem mais simples e íntima, não condicionada pela finalidade social que na quase totalidade da sua obra, o movia irresistivelmente. Nas peças de lirismo religioso, mais do que em nenhumas outras, surge o lirismo subjectivo de Gil Vicente. 
Ó gloriosa Senhora do mundo,
excelsa Princesa do céu e da terra,
fermosa batalha de paz e de guerra,
da Santa Trindade secreto profundo!

O interesse pelas obras hieráticas vai-se esfumando no espírito do poeta. A sua atenção volta-se para o norte de África:
  • A farsa Quem tem farelos?;
  • A tragicomédia Exortação da Guerra.
Mas porque teria quebrado a sequência das suas obras religiosas e patrióticas com o Auto das Índias, em que o colonizador e propagador da fé nos surge transfigurado num assassino e ladrão, que chega ao reino triunfante e rico?
Ao trabalho honesto e produtivo sobrepunha-se a riqueza fácil. Aos cabedais adquiridos sobrevinha a ambição nobiliárquica. Da inércia ambiciosa manava a liberdade de costumes.

Cortesia de meloteca

Após a representação do Auto da Fama, Gil Vicente traça a definitiva linha de conduta no campo literário. Giza a acusação e o castigo dos crimes, com penas infernais na Trilogia das Barcas:
  • A Barca do Inferno;
  • A Barca do Purgatório;
  • A Barca da Glória.
A «cura» e o caminho para atingir a glória são ensinados no Auto da Alma. O que foi exposto traduz o lirismo subjectivo ou pessoal de Gil Vicente.

O lirismo em  Gil Vicente não é na maioria dos casos pessoal ou subjectivo, antes se compraz nos sentimentos íntimos das personagens por ele criadas ou imitadas. É o caso da célebre figura da Maria Parda, «porque viu as ruas de Lisboa com tão poucos ramos nas tabernas e o vinho tão caro, e ela não podia viver sem ele». Há cruel realidade nos lamentos da infeliz: 

Triste desdentada escura,
quem me trouxe a tais mazelas?
Oh! gengivas e arnelas,
deitai babas de secura;
carpi-vos, beiços coitados,
que já lá vão meus toucados,
e a cinta e a fraldilha;
ontem bebi a mantilha,
que me custou dous cruzados.

A cena da Comédia de Rubena, em que os pastorinhos, Pedrinho e Afonsinho, Cismena e Joane, discutem os seus haveres, naquela ingenuidade infantil de quererem ultrapassar o pequeno mundo de riquezas do seu antagonista, é relevante na sua simplicidade. A preocupação dos tipos colhidos da vida real, a amálgama entre os traços objectivos e subjectivos das suas personagens, dão permanente actualidade à obra de Gil Vicente.

Cortesia de teiaportuguesa

Cortesia de João de Almeida Lucas/Livraria Clássica Editora, 1943/JDACT