quarta-feira, 10 de outubro de 2012

A Saga do Rei Menino. A Aventura de um Menino, ficando Encoberto na luz das estrelas… António Cândido Franco. «Inês e Sebastião são as duas figuras marcantes da História de Portugal. Toda a História de um povo está compreendida entre essas duas figuras. Uma abre-lhe a porta da existência, com os vagidos da manhã, a outra cerra-lha nas costas, com os estertores do anoitecer»


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«Neste livro vou falar do rei Sebastião. É o momento mais fantástico da História de Portugal, porque é o mais trágico e o mais cómico. Noutro falei de Inês de Castro, cuja beleza era uma ofensa, uma ofensa tão penosa que Afonso IV a condenou à morte em conselho de ministros. É uma tragédia monstruosa, mas pessoal, sem nada de cómico. Os acontecimentos que envolvem Sebastião são mais negros, porque se estendem ao país inteiro, e mais brancos, porque provocam o riso. Depois da morte de Inês choraram longamente as ninfas do Mondego, chorou o rei Pedro e choraram os infantes, choraram as aias da infeliz, mas depois da batalha de Alcácer Quibir, conhecida na História de Marrocos pela batalha dos Três Reis, porque três reis nela participam e nela perdem a vida, carpiu Portugal inteiro. E o degrau mais fundo da nossa História, mas também o mais maravilhoso. O abismo de Alcácer Quibir é negro, tão negro que se vêem estrelas hialinas e longínquas a brilharem nessa escuridão.
Inês é a dor do parto e a dor da morte, enquanto Sebastião é esta e a da ressurreição. Inês é tão imediata como uma cantiga de amigo, enquanto Sebastião é variado como um drama vicentino, indo do sério ao jocoso. O sangue fresco da degolação de Inês pinta as quinas dos Afonsos, mas o de Alcácer Quibir deu a cor ao enterro de Portugal e, o que é supino, à sua ressurreição de 1640.
Alcácer Quibir é o momento mais tenebroso da História de um povo, uma derrota ignominiosa, uma página de luto e escuridão, feita de carne, sangue e lágrimas, uma catástrofe gigantesca que é impossível fitar de frente, mas é ao mesmo tempo o seu momento mais luminoso e epifânico, aquele de que se esperou sempre salvação, vida eterna e imortalidade, tudo o que é extraordinário e glorioso. Foi em torno da batalha de Alcácer Quibir que se escreveram as páginas mais assombrosas da História portuguesa e que se viveram os mais formidáveis milenarismos, desde a Cova da Beira até aos Sertões americanos, desde os primeiros Sebastianistas populares e cristãos-novos até aos sertanejos de Canudos no século XIX e XX. E foi assim, porque essa batalha, acontecida no dia 4 de Agosto de 1578, tem a escuridão da morte e aluz da vida. Essa batalha é triste e sinistra, mas é também risonha e luminosa.

Inês e Sebastião são as duas figuras marcantes da História de Portugal. Toda a História de um povo está compreendida entre essas duas figuras. Uma abre-lhe a porta da existência, com os vagidos da manhã, a outra cerra-lha nas costas, com os estertores do anoitecer. As feridas de Inês foram a fonte onde Portugal bebeu o leite da sua génese, como as de Sebastião foram o soro da sua velhice e o novo leite da sua ressurreição ou da sua nova meninice. Tudo o que mais importa da História de Portugal está nesse par, que é uma dupla de doidos. Inês é uma louca de amor, com o seu rei louco de saudade, esse Pedro desvairado de desejo e lembrança, e Sebastião, que morreu na batalha de Alcácer Quibir aos vinte e quatro anos, sem descendência, é um louco do destino, um jogador da roleta russa ou, o que vem a dar no mesmo, uma criança que viveu a brincar, entretendo nos dedos a hora adversa do seu povo.
A tragédia do rei Sebastião não é apenas Alcácer Quibir, embora essa batalha tenha o perfil de um poema trágico clássico, com a unidade de tempo e espaço e a morte invulgar de três reis. Sebastião tem uma tragédia mais funda, mais larga, mais antiga, mais fatal. Brilha desde a mais remota idade uma estrela funesta sobre o seu destino. A sua adversidade foi longa, tão longa que dura até hoje». In António Cândido Franco, A Saga do Rei Menino, a Aventura de um Menino, ficando Encoberto na luz das estrelas…, Ésquilo, Lisboa, 2007, ISBN 978-989-8092-14-4.

Cortesia de Ésquilo/JDACT