quarta-feira, 31 de outubro de 2012

As Magias. Herberto Helder. «Tínhamo-las perdido de vista. Depois, hoje, reencontradas, são elas que me reencontraram, e me obrigam a lembrar. Língua insensata que avança, magnificamente autónoma como um corpo de delfim a correr sem esforço ao lado do meu corpo»



Cortesia de assirioealvim

Um poema, Iniji, que não é como os outros
(J.M.G. Le Clézio)
«A música fere a música, e as palavras de Iniji reencontram no fundo de nós a sua própria imagem, como sobrevoando um grande lago quieto.
O poema veio de longe, assim, tranquilo, com os seus gestos, a sua vida, para nos reencontrar. Insensato, móvel, penetra em nós e escruta-nos. Ou éramos nós que não tínhamos corpo, e temos agora o corpo de Iniji. Não sabíamos falar. Não possuíamos ideias, nem imagens, perdêramos o norte. Longe deste poema, a vida era surda, sussurrada, pois todas as palavras da linguagem normativa, a linguagem das teses e antíteses, a linguagem das análises, dos juízos e proclamações solenes, eram unicamente um lento nevoeiro roçando a face da matéria. Era possível que nos confundissem com os torrões e calhaus. Não havia nenhuma ciência, nenhuma lembrança. Como é possível? Onde nos encontrávamos então, antes, antes de Iniji? Claro, considerávamos importantes essas palavras da linguagem, essas palavras comuns. Excitadas como matilhas, boas para caçar, farejar, ladrar, matar. Mas há outra língua, que falávamos antes de nascer. Uma língua muito antiga, não servia para nada, não era a língua do comércio com os homens. Não era decerto uma língua de sedução, para subornar, ou para dominar. Dela provinham as palavras, estas palavras: fluidos, vento, bilha, órfã, carris, dormir, coração, constelada, cisne, vapor, contorno, opala, vem... Existiam ao mesmo tempo que a vida, não desligadas dela. Eram uma dança, uma natação, um yoo, eram movimento.
Tínhamo-las perdido de vista. Depois, hoje, reencontradas, são elas que me reencontraram, e me obrigam a lembrar. Língua insensata que avança, magnificamente autónoma como um corpo de delfim, a correr sem esforço ao lado do meu corpo, ultrapassando-o, iludindo-o, rápido através da massa de água que não consegue sustê-lo. Nada dizer, nada mais dizer depois de Iniji. Mas não é isso que pretende esta língua. Porque nos tornaria mudos? A música entra pelos ouvidos e deve sair pela boca, ou então pelas ancas. Iniji não existe.
Cada vez que dela nos apercebemos, a língua estala e a palavra morre. Interrompida antes de entrar no mundo. Reflexos, talvez, porquanto as suas palavras não são palavras. Se retemos um nome, felizes por saber aquilo que surgirá, ele rebenta. Não há nomes, só bolhas. Balbuceios de bébé, Iniji, Ananiá Iniji. A língua que me não quer falar enlouquece, faz turbilhonar a agulha, acelera, liberta os seus enxames de faíscas. A fascinação hipnótica agarra-nos por dentro do corpo, bem gostaríamos de afastar os olhos e regressar às vozes que falam, em baixo, que nos chamam. Mas o medo de perder uma única destas palavras voadoras, de perder a dança, a natação, a vida!
Porventura pela primeira vez fixamo-nos a alguma coisa. A língua de Iniji não é um logro. As linguagens pesadas tropeçam nas suas consoantes, nas sílabas, como um cego tropeça nos móveis de um quarto desconhecido. Já não pretendemos falar todas as línguas. As palavras encontram-se além, sempre além, e é preciso apanhá-las depressa. As vogais que soam, ressoam. Talvez seja necessário abandonar tudo. Abandonar tudo isso, os adornos medíocres, as máscaras, os anéis, os cintos coleccionados, tudo isso com que nos ataviaram. Desejaríamos acreditar que eram só palavras, as mais inconsistentes». In As Magias, Herberto Helder, Poemas mudados para Português, Assírio & amp, Alvim, 2010, ISBN 978-972-37-0086-2.

Cortesia de Assírio e Alvim/JDACT