quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Crónica Esquecida d’el rei João II. Seomara Veiga Ferreira. Leituras. «O infante Pedro não queria o regresso da cunhada. A resposta foi diplomaticamente protelada. “El Rei e o povo desejam, sem sombra de dúvidas, que se faça à Rainha D. Leonor tudo o que nestes Reinos se deve e pode fazer”. Os embaixadores foram despedidos e o tio e o sobrinho…»

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«A Rainha partira na absoluta penúria. Nunca se soube, nem ela, o que aconteceu ao dinheiro e jóias que tivera antes a ideia de enviar à irmã e aos irmãos e isso, embora os cronistas não o refiram (e quantas vezes ouvi falar sobre o assunto!), chocou algumas pessoas. Bem sei que a mãe do jovem rei foi muito culpada da sua própria infelicidade, mas o cunhado, que sempre demonstrou ser um homem leal, de palavra, ordeiro, até pacífico, não lhe perdoou um único deslize. Foi como se o infante Pedro vingasse na cunhada todos os dissabores e infâmias do sogro, da mulher e dos seus próprios infortúnios. Depois, claro, existia o problema da regência, as pressões dos Braganças, o seu desmedido orgulho, a sua tenebrosa e insaciável ambição. Em Pedro, o político, o cesarista ultrapassavam o homem, os seus medíocres anseios pessoais, embora seja humanamente impossível uma dicotomia total entre as duas partes. No Barcelos apenas existia a barriga, os castelos, o poder de possuir terras, gentes, ouro. A grande diferença é de qualidade. O rei Afonso, já velho e homem da sua época, do século anterior, e o infante Pedro, homem do futuro, como agora o concebemos na Europa, futuro que seu neto quis edificar, foram os dois pilares do reino durante os dez anos da regência até Alfarrobeira. D. Leonor, no meio, foi literalmente esmagada entre os dois colossos e as concepções de poder que eles representavam.
Quando o infante morreu não estava mais rico do que antes da regência. Pelo contrário, teria muitas dívidas porque o grosso do dinheiro havia-o ele depositado no Monte de Florença, duzentos e oitenta mil cruzados em ouro. Porquê? Por que guardava o Regente de Portugal o ouro na Itália, num banco estrangeiro? Porque ele nunca pretendera ocupar indevidamente o trono português, trair o rei seu sobrinho e genro e, portanto, a nação. O que Pedro pretendeu fora apenas ter no momento próprio, o montante em ouro razoável que lhe permitisse levar a bom termo uma campanha militar contra Castela e Aragão, sustentar a Catalunha e reconquistar aquilo a que, por herança da mulher pelo pai conde de Urgel, tinha direito. Para isso seria necessário arrumar a casa primeiro. Isso ia contra o Tratado de Paz e Amizade que seu próprio pai e os infantes tinham jurado com os Transtâmaras? Porque não? Em política o que conta é ganhar, aplicar o programa, organizar o mundo. Ele não lera Cícero, e Séneca, e a História de Ciro e Alexandre, e a de Vespasiano? A sua biblioteca pessoal continha muitas centenas de obras de história antiga, como a do pai e a que legou ao sobrinho, na Alcáçova, outras mais. Se Afonso, o quinto de nome, teve a exemplar biblioteca que eu conheci, ao tio a deveu e não só apenas aos seus gostos pessoais de homem sensível e culto, com um estilo primoroso e vastos conhecimentos das letras e das ciências. Na realidade, se Afonso alguma coisa tinha devia agradecer ao tio; além do trono e de uma infância e adolescência sem guerras civis, não fora o que as ambições dos Braganças propiciaram, foi o ensino da sublime arte da eloquência, o conhecimento profundo da cultura do seu tempo e da Antiguidade que lhe serviram para elaborar as suas obras universalmente citadas em sua vida e ainda hoje, como o fez Zacuto, antes de fugir de Portugal, quando da grande expulsão. O rei Afonso pintava, segundo me confessou mestre Guedelha, sabia apreciar a pintura mural e de cavalete, cultivava a música com sentimento e amava a poesia e a arte de versejar. O seu principal bibliotecário, à maneira dos Gregos e Latinos, no paço, foi Zurara.
 
D. Leonor, em Castela, arrasada, tenta, depois de perceber o logro em que caíra, regressar a Portugal já perto da maioridade da filha. A saudade das filhas matava-a aos poucos. Não consegue sequer contactá--las por carta e, se o fez, as cartas não chegaram ao seu destino ou foram destruídas. De resto, duvido que o Regente Pedro, que passou a exercer o poder absoluto, permitisse que o jovem rei ou alguém perto dele pudesse ter acesso a tais lancinantes pedidos. Também não sei se a rainha, conhecendo a sua situação e o desprezo do cunhado, tentaria escrever directamente para a corte. Não o fez? Pelo menos quando o fez, e isso não caiu no segredo, foi para Ceuta, para o então governador, o outro filho do Barcelos, o conde de Arraiolos. Depois houve o contacto por embaixadores. O infante Pedro não queria o regresso da cunhada. A resposta foi diplomaticamente protelada. “El Rei e o povo desejam, sem sombra de dúvidas, que se faça à Rainha D. Leonor tudo o que nestes Reinos se deve e pode fazer”. Os embaixadores foram despedidos e o tio e o sobrinho dirigiram-se para Tentúgal, no campo do Mondego. Aí o regente Pedro convocou como embaixadores a Castela, Leonel de Lima, mais tarde visconde de Vila Nova de Caminha e o Rui Gomes de Alvarenga, que partiram para Castela com informações secretas, depois de industriados pelo Regente sobre o que deveriam de responder. A Rainha, à míngua de tudo, sem avisos nem respostas, passara apenas a ser uma peça sem valor, o peão apeado no tabuleiro do xadrez do Infante e da própria família em Castela. Por motivos de paz interior e externa (o que certamente também interessaria a Castela) D. Leonor de Aragão e Transtâmara, viúva de El Rei Duarte, não deveria mais voltar ao Reino ‘e por ser madre d'El Rei e por El Rei o requerer, lhe dariarn onde ela quisesse fora de Portugal, seu dote e arrás, e todas as coisas que neste reino se achassem...’ Sei que Pina o repete e se limitou a repetir o que lhe mandaram dizer, mas a verdade é que El Rei era muito miúdo para requerer o que quer que fosse, a Rainha não mais viu as filhas, ficando apenas com a jovem infanta D. Joana e nunca lhe foram remetidos nem dinheiro, nem prendas de dote nem coisa alguma. Claro que D. Leonor soube também que João II de Castela, naturalmente, nem viu os embaixadores e, se os viu, o seu valido Álvaro de Luna é que os recebeu e tratou dos negócios. Era homem de confiança do Regente Pedro e inimigo natural dos Transtâmaras». In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.

Cortesia de Editorial Presença/JDACT