«[…] maiormente as do “Africano” e do “Príncipe Perfeito”,
onde a nação se apaga e mal rasteja como uma sombra aos pés do trono, anémicas,
escassas, subservientes, constatará com dor que as deste último são um pálido
resumo das crónicas dos seus antecessores, que ele aproveitou, e representam
com a sua monstruosa deformação uma imensa e irremediável perda para a história
nacional
Desde já podemos dar a prova desse facto. Em várias das suas
crónicas Azurara, para evitar delongas ou repetições, remete o leitor para a crónica
geral do reino. Dois passos, por exemplo, da ‘Crónica da Guiné’, mostram-nos
que Azurara relatou na sua ‘Crónica de Afonso V’, factos
relativos aos Descobrimentos, que Rui de Pina mais tarde totalmente eliminou. ‘E
era ainda aí Palenço, que era um homem que tinha feito mui grande guerra aos mouros,
e que toda sua vida dispendeu em serviço de Deus e do reino, cometendo e
acabando por si mui grandes feitos, segundo temos falado na crónica geral,
depois que Ceuta foi tomada’.
- O corsário Palenço, como se depreende das crónicas dos condes de Meneses, de Azurara, e principalmente da Historia de las Indias, de Las Casas, desempenhou papel importantíssimo na defesa do estreito de Gibraltar e no impedimento armado das novas navegações atlânticas aos castelhanos.
Rui de Pina calou esses feitos culminantes para a
compreensão da nossa empresa. Ainda outra remissão de Azurara:
- E da primeira vinda destes Canareos a este reino e doutras muitas cousas que se passaram acerca deles, falaremos mais compridamente na crónica geral dos feitos do nosso reino.
Estes canareos, segundo todas as probabilidades, devem-nos
ter auxiliado na guerra contra os castelhanos nas suas ilhas natais, mas toda a
história dessa longa luta que terminou pela posse das ilhas e sem a qual se não
pode compreender o nosso vasto plano dos Descobrimentos, foi eliminada nas
crónicas de Rui de Pina. Provado temos, pois, que não só Rui de Pina se apropriou
destas crónicas dos seus antecessores, como delas omitiu passos fundamentais
para a história dos Descobrimentos.
Acrescentemos ainda que de toda a ‘Crónica da Guiné’, ou antes do I volume, que nos é conhecido e
abrange os Descobrimentos até ao ano de 1448, Rui de Pina aproveitou apenas o
que basta para parte dum único capítulo nas suas duas crónicas de Duarte
I e de Afonso V. descaso do cronista ou dos príncipes, o ‘Perfeito’ e o ‘Venturoso’,
ao serviço dos quais ele escreveu? Mas durante a primeira quarta parte do reinado
de Afonso V e quando os Descobrimentos estavam apenas no começo e mal se podiam
sonhar as suas consequências, dois cronistas, Cerveira e Azurara, eram
encarregados de os relatar minuciosamente. Como se pode conceber que em menos
conta fossem tidos esses feitos, quando por via deles a nação culminava o
apogeu da glória e do poder e de súbito se antepunha em acção civilizadora e
transformadora do mundo a toda a Europa?
Perante esta série de factos não podem ficar dúvidas de que
houve um deliberadíssimo propósito de calar na historiografia oficial do tempo
a obra dos Descobrimentos, e que, sendo assim igualmente se impunha fazer
desaparecer dos documentos escritos tudo o que necessariamente se lhe prendesse
(249)».
In Jaime Cortesão, A Expansão dos Portugueses no Período Henriquino, Portugália Editora, Lisboa 1965.
In Jaime Cortesão, A Expansão dos Portugueses no Período Henriquino, Portugália Editora, Lisboa 1965.
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